terça-feira, 22 de novembro de 2011

Relato de um sonho sobre um trem

Era uma estação de trem, ou ao menos era para ser uma estação de trem, imagino. Eu estava lá, mas não tinha nenhuma idéia de como diabos eu tinha ido parar lá - era como se eu tivesse simplesmente me materializado, surgido do nada, conjurado naquele lugar por algum estranho e caprichoso tipo de feitiçaria. Tinha a vaga impressão de ter me despedido de algumas pessoas, mas parecia algo que tinha se passado há muito tempo, que já estava para trás, escondido debaixo dos degraus rangentes da escada que leva para o sótão da memória. Longe, longe. Diante de mim, e logo além dos limites daquela estação de paredes cinzentas e manchadas de umidade, um enorme terreno descampado, interminável, estendendo-se muito além do meu campo de visão. Era possível ver o sol se pondo na linha do horizonte - uma visão bonita, sem dúvida, mas não me sentia especialmente impressionado com ela, como se no fundo ela não tivesse nada de mais. De onde quer que eu tivesse vindo, era bem óbvio que eu não ia conseguir voltar, pelo menos não sem ajuda. Mas não tinha ninguém comigo lá, ninguém que pudesse me levar de volta se fosse o caso, ninguém para me mostrar como pegar o trem, ninguém para me encorajar ou me dizer o que fazer. Eu estava sozinho, de pé naquela estação desconhecida, e sozinho ia ter que me virar. Sozinho.

Eu não estava com medo, apenas me sentia um pouco chateado de estar sozinho e um pouco confuso por não saber direito o que fazer. Fiquei parado ali um pouco, pensando em muitas coisas, a maior parte delas não mais do que ideias tênues que não ficavam no meu cérebro tempo suficiente para que eu pudesse contemplá-las, por um instante que fosse. O tempo passava, o sol se punha no horizonte, logo ia ficar escuro, e me ocorreu que era um tanto idiota da minha parte ficar ali parado, de pé, esperando sem saber o quê, sem saber a quem. Esperando uma ajuda que, eu sabia, não ia vir. Eu já tinha esperado demais - e, se ninguém me ajudava, então eu ia ter que me ajudar, antes que fosse tarde e a noite tomasse conta de tudo de vez.

Comecei a andar meio a esmo, indeciso ainda, tentando pensar no que fazer. O movimento na estação era pequeno, e as pessoas que eu via passar não me davam atenção, não me ouviam, sequer olhavam para mim quando eu tentava pedir a elas alguma informação. Não parecia um gesto de grosseria da parte delas, era mais como se elas não me vissem, mesmo. E eu queria ser visto, queria que me ouvissem, queria conversar com elas - mas por mais que eu tentasse, elas não reparavam em mim, seguiam seu caminho sem que eu provocasse nelas qualquer reação. Comecei a me sentir um pouco irritado, e pensei, Que merda, Deus sabe o quanto estou tentando, e não dá certo nunca! No que estou errando? Por que não querem me ouvir?... Mas foi um sentimento curto, e logo depois comecei a me sentir muito só, e uma tristeza grande foi tomando conta de mim. Cansado de andar e de implorar em vão por atenção, sentei num pequeno banco de madeira, frustrado, magoado, engolindo em seco o choro. Era errado, de algum modo, que eu estivesse ali? Era por isso que ninguém reparava em mim, porque eu estava no lugar errado, no tempo errado, e não fosse mesmo para ninguém me ver por enquanto? E por que meus amigos, nos quais eu tinha confiado tanto, tinham me deixado lá, sozinho naquele lugar estranho, e nenhum deles vinha me ajudar? Rostos e vozes me vinham à mente, mas de novo era tudo muito rápido, muito tênue, e eu não conseguia achar nenhum sentido naquele monte de sons e imagens desconexas. Já estava quase totalmente escuro, e eu não ia conseguir sair dali, e ia ter que ficar ali até amanhecer, esperando. Que bosta, pensei, e pensei também, Eu quero ir embora. Eu quero ir para casa. Chega. Vão todos para puta que o pariu. Eu quero ir para casa.

De repente, levantei os olhos, olhei para a frente e vi um pouco ao longe algo que me animou. Era uma espécie de escada circular, de pedra, que levava para um andar inferior àquele no qual eu estava. Ali embaixo tinha pessoas, eu conseguia ouvir o barulho dos passos delas e o som de suas vozes. Levantei de um salto, andei rápido até a escada, e desci depressa, com a esperança renovada. Cheguei ao andar inferior e era tudo diferente - muitas pessoas, pessoas humildes, trabalhadores, mães de família, crianças, velhos. Pessoas que sorriam, que falavam alto, cantarolavam e davam risadas, andando para todos os lados. Lá não havia mais noite, pelo contrário - já era manhã, um dia novo, um dia cheio de desafios e coisas para fazer. Ali era mais divertido, mais caloroso, ali eu era visto pelas pessoas, elas me diziam Bom dia, e eu respondia para elas, Bom dia, e elas me ouviam e sorriam para mim, e eu sorria de volta para elas. Aquele era o lugar certo, o lugar onde eu pegaria o trem que me levaria para o lugar onde deveria ir. Era certo eu estar ali, mesmo que fosse algo breve e transitório, e esqueci toda a tristeza, e me senti feliz.

Mas eu não podia ficar esperando muito tempo, e eu sabia disso. Eu já estava atrasado, tinha perdido muito tempo no andar de cima, e era hora de partir. Parei uma das pessoas que passavam por mim, uma senhora que usava roupas pobres de lã e um lenço na cabeça, e perguntei para ela onde deveria pegar o meu trem. Aí mesmo, moço, ela me disse, aí nessa entrada. Foi quando vi aos meus pés uma espécie de alçapão, uma porta bastante pequena no meio do chão, feita de um metal já enferrujado e com uma pintura estragada pelo tempo. Aqui?, eu disse, apontando para o alçapão, e me abaixei para poder ver melhor. Sim senhor, disse a senhora, e logo uma velhinha se juntou a ela, carregando uma criança pelo colo, e disse É aí sim, moço, aí o senhor entra para embarcar.

Abri aquela porta, que mais parecia a tampa de um fogão, e dei uma olhada para o que tinha ali dentro. Meio que colada naquela tampa, algo que mais parecia um pequeno e estreito poleiro, uma armação que rangia a cada movimento que eu fazia com a porta. Além dele, não se via nada - era uma escuridão intensa, quase sólida, um negro cor de piche que os raios daquela manhã não conseguiam penetrar. Não cheguei a ficar com medo, mas pensar que aquela era a entrada para o embarque me deixou chocado, e eu disse Como assim, vocês também embarcam por aqui? Sim, disse a velhinha que tinha chegado, todo mundo embarca aí, esse é o caminho que todos nós seguimos. Tem o outro trem, disse a senhora que tinha falado comigo primeiro, mas esse é o trem lá de cima, não é o nosso, ele vai para outro lugar. O trem deles não deve ser como esse, eu falei, e elas riram e disseram, Claro que não, o embarque deles é muito mais bonito, o trem é novo, a viagem muito mais fácil. E vocês ficam com isso aqui, pensei em voz alta, e uma delas me ouviu e falou Para nós, meu filho, nada nunca é fácil. E eu entendi o que ela queria dizer, e percebi que ela tinha razão, e fiquei quieto e não respondi nada.

Levantei uma vez mais aquela porta, ainda em dúvida, sem saber se deveria ir ou não. Era estranho, não parecia seguro, e eu não tinha ideia do que tinha ali dentro nem do que fazer depois que tivesse entrado. Mas pensei no que elas tinham me dito, sobre todas aquelas pessoas humildes terem que fazer aquele mesmo caminho, e me ocorreu que eu não era melhor que nenhuma delas, que aquele caminho era o meu caminho também, e que se elas podiam passar por aquilo e ainda assim serem sorridentes e atenciosas é porque não tinha motivo algum para que eu não fizesse exatamente o mesmo que elas. E pensando isso me veio uma sensação de que aquele era um caminho novo, sim, mas ao mesmo tempo era um caminho que eu no fundo já conhecia, um caminho que de algum modo me levaria de volta a algo que era meu desde sempre. E então não tive mais medo. Lembrei rapidamente das pessoas que tinha visto no andar de cima, pessoas que tinham me ignorado e me tratado como se eu não existisse, e senti pena delas, e imaginei que bom seria para elas se elas um dia vissem aquela escada e tivessem a presença de espírito de descer. Talvez então eu as pudesse rever e elas me ouvissem também, pensei, e essa ideia me deixou um pouco comovido.

Bom, acho que tenho que ir, não é?, eu disse, tentando soar animado e cordial. Sim senhor, pode ir, um bom dia para o senhor, me disseram. Respirei fundo, e pensei, Pois é, Igor, o trem não vai ficar te esperando, vamos lá então. Abri a porta, enfiei um dos pés naquele poleiro, tomei um impulso e pulei na escuridão.