quarta-feira, 6 de junho de 2012

Relato de um sonho sobre o Fim do Mundo

Era o Fim do Mundo. Nao sei explicar como ou por quê; lembro apenas que era o Fim do Mundo e que todos sabiam que o Mundo acabaria, embora ninguém estivesse muito certo de como a coisa toda ia acabar acontecendo. Era um clima estranho, o que antecedia o Fim do Mundo - as pessoas não pareciam nervosas ou tomadas de medo, apenas preparavam-se para o evento inevitável, como quem viaja de longe para encontrar parentes no natal. Pessoas andavam por todos os lados, mas não havia sinais visíveis de pânico, pressa ou desespero. Não era uma festa, mas também não era algo assim tão trágico; era simplesmente o Fim do Mundo, uma data que ninguém tinha planejado vivenciar, mas que todos pareciam encarar com a tranquilidade de quem sabe que não há muito que se possa fazer a respeito.

Minha família inteira havia se reunido para o Fim do Mundo. Meu irmão havia vindo, junto com a esposa; minha irmã e o namorado também estavam presentes. Tínhamos todos acabado de voltar de uma longa caminhada; conversávamos em voz baixa, sorrindo uns para os outros, alegres com reminiscências. Entre nossos pés, andavam os cães. Minha mãe tinha preparado alguma coisa no forno para comermos, e parecia satisfeita e orgulhosa quando nos recebeu. Não recordo exatamente do prato que ela serviu - era algo com pedaços de carne e batatas, além de alguns temperos coloridos, rodelas vermelhas, raízes esverdeadas. Estava muito saboroso. Lembro que alguém, acho que minha irmã, comentou algo sobre os bolinhos de batata da minha falecida avó materna, prato sempre especialmente apreciado pela família quando ela ainda vivia. Rimos todos com essa lembrança, o que nos levou a lembrar não apenas dela, mas também do meu pai e de outros familiares que já não estavam mais entre nós. Foram lembranças suaves, sem nenhum traço de tristeza, típicas de quem sabe estar próximo o instante do reencontro.

Anoitecia. Pelas janelas vizinhas, eu podia ver que as outras casas acendiam as luzes, famílias igualmente reunidas para passarem juntas o Fim do Mundo. Seria aquela a noite, todos sabiam. E logo fez-se um curioso silêncio, repleto de pura expectativa, o silêncio de quem espera de forma calma mas ansiosa para que se abram as cortinas do espetáculo.

Lembro que esperamos por muito tempo. Trocávamos brevemente algumas palavras comentando alguma coisa banal e logo retomávamos o silêncio. Fomos todos para a sala dos fundos, cuja janela dava de frente para um horizonte amplo e aberto. O céu estava cinzento, nuvens finas encobrindo a visão da lua e das estrelas.

De repente, começou. As nuvens foram se desfazendo, levadas embora por uma suave brisa. O céu foi clareando, o cintilar das estrelas emoldurando uma enorme e imponente lua cheia. Era como se, mais do que as nuvens que nublavam o horizonte, o vento dissipasse também algo muito maior e mais profundo, algo pesado e carregado, que obscurecia nossa visão há tanto tempo que havia se tornado onipresente e nem éramos mais capazes de reparar em sua presença. O céu ia ficando mais claro, cada vez mais claro, e as estrelas saltavam aos olhos mais e mais, formando desenhos e tramas. Constelações multicoloridas enchiam o céu de um brilho inacreditável, e eu só conseguia pensar Meu Deus, o que é isso, que coisa linda, então é assim que o mundo acaba, obrigado por isso tudo, obrigado, obrigado, obrigado. E não acabava nunca, e surgiam mais e mais estrelas, a própria lua parecia imensa imensa imensa como se nunca fosse acabar de tão grande e mesmo assim ela quase desaparecia atrás de tanta luz cósmica vindo de todos os lados. A janela era uma janela para o espetáculo de todas as coisas. Éramos testemunhas privilegiadas, e se aquele era o Fim do Mundo então era bom e belo e justo e encantador que o mundo acabasse daquele jeito, brilhando e brilhando até que todas as coisas fossem uma única e interminável fonte de pura luz.

Olhei então para baixo, para o solo, e vi animais surgindo do chão de terra batida, quase sem sinais de vegetação. Eram cobras imensas, que escalavam as paredes das construções ao redor, e eu e meu irmão precisamos fechar rapidamente os vidros da janela para evitar que entrassem em casa. Alguns morcegos cruzaram gritando pelo céu, e vi que o chão começava a rachar, levantando pequenas nuvens de pó. E das rachaduras saíam mãos, crânios, esqueletos. Erguiam-se vagarosamente, espanando o pó dos séculos de cima de si, e mesmo assim não parecia algo assustador, não era como se levantassem do chão em nome da vingança ou da carnificina. O céu seguia resplandecendo com incontáveis luzes, e era mais como se os mortos quisessem simplesmente assistir o espetáculo junto conosco, como se todos os seres humanos, os vivos e os mortos, merecessem testemunhar aquele momento de redentora beleza universal. Assim sentia eu, e me sentia sinceramente comovido, pensando em todos os injustiçados em vida que tinham naquele momento a chance de estarem ao nosso lado no que quer que estivesse por vir.

Pouco durou meu devaneio, no entanto. Um vento terrível surgiu, levantando uma cortina de poeira, e nuvens pesadas cobriram completamente a visão encantadora das estrelas e da lua. Era cinza espesso, cortado por raios incessantes, o prenúncio de uma tempestade capaz de levar tudo e todos em seu trajeto. As primeiras gotas, enormes como bolas de pingue-pongue, estouraram contra os vidros das janelas, e então percebi que nada resistiria, que aquele era todo o Céu pronto para desabar sobre nós. Era a Morte chegando, percebi. E era Morte intensa, e era Morte arrebatadora, e era uma Morte que fascinava e seduzia e parecia certa e quase convidativa. Nada éramos e nada podíamos, diante da Morte. Tempestade de todos os milênios, que vinha com a força do Universo para lavar tudo e nada deixar para trás. Era a tempestade do Fim do Mundo, armada durante séculos sem fim e que finalmente tinha chegado. Para todos nós.

Pensei rapidamente duas coisas, ao perceber que estava prestes a despertar. Como é belo o Fim do Mundo, pensei, e Preciso recordar tudo isso, pensei também. Porque algo me dizia, bem do fundo da minha alma, que ali estava algo que eu precisava contar, e que as pessoas que não tinham visto tudo aquilo precisavam saber, precisavam entender e ter algum tipo de presságio de tudo que viria. Preciso recordar tudo isso, pensei. E o Fim do Mundo fez-se sol, e meus olhos perceberam a si mesmos detrás das pálpebras, de volta ao mundo que ainda deve aguardar um pouco antes de encontrar seu Fim.