terça-feira, 17 de julho de 2012

Do tempo que achavam que eu era colorado

[caption id="attachment_303" align="alignleft" width="225" caption="Foto: Ingo Wilges"]Ingo Wilges[/caption]

Publicado originalmente em 29 de junho de 2007

Como imagino que a essa altura muitos de vocês já saibam, sou gremista. Muito já sorri em nome do Grêmio, muito já xinguei, gritei, desanimei, sofri. Gremismo que eu herdei do meu pai, tricolor convicto, que acompanhou o clube por anos a fio e tinha uma série de itens referentes ao clube – alguns deles eu ainda guardo comigo, inclusive. Resumindo, sou do lado azul, preto e branco do Rio Grande, e assim será até o fim.

Pois bem, tinha um vizinho meu que achava que eu era colorado. Na verdade, não é que ele achasse: ele tinha certeza, absoluta e inquebrantável, de que eu era um torcedor do Internecional. Tratava-se de um senhor já velho e enfraquecido, que por ser provavelmente vítima de algum derrame ou reumatismo caminhava muito devagar e tinha que se segurar no que encontrasse pelo caminho para manter o equilíbrio. Morava num apartamento de térreo (como nosso condomínio não tem elevadores, nem poderia ser diferente), possivelmente sozinho – embora recebesse visitas constantes do filho, que o levava para o que certamente eram sessões de tratamento para qual fosse a moléstia que tinha. Falava meio baixo, arrastando a voz mas tinha um vocabulário razoavelmente rico, sinal de que era alguém estudado e culto. E colorado. Bem colorado.

Sabe-se lá de onde ele tirou a idéia de que eu era colorado também. Um dia, entretido em levar o cachorro da família para passear, cruzei pelo senhor em questão, que caminhava muito lentamente segurando as grades de ferro do jardim externo de seu edifício. Civilizadamente, cumprimento o homem e sigo meu caminho. Minutos depois, enquanto eu voltava pelo caminho de pouco antes, ele - que devia ter avançado menos de cinco metros entre minha ida e meu regresso - olha para mim e diz: “e esse Fernandão que contrataram, será que é bom mesmo?”. Pensei com meus botões que não faria mal algum dar um pouco de conversa para aquele senhor e disse que sim, o Fernandão era uma boa contratação, me parecia um jogador qualificado e por aí vai. Ele ficou muito contente de ouvir minhas considerações superficiais sobre o atleta, e quando me retirei fui cumprimentado com certa reverência, como se fosse um especialista em futebol e não um palpiteiro qualquer. Um evento ligeiramente curioso, mas enfim, vida que segue.

A partir daí, sempre que me via o senhor puxava assunto sobre o Internacional. Até aí tudo bem: mesmo não acompanhando o Inter com tanta dedicação, eu disfarçava, respondia do jeito que podia e íamos levando. Até que um dia aquele vagaroso senhor me cumprimenta como de praxe e diz “e aí, rapaz, e o nosso time?” antes de tecer uma consideração qualquer sobre a derrota colorada daquele fim de semana.

Imediatamente soou o alarme em minha mente, e percebi que o senhor não só achava que eu entendia horrores de futebol, mas que eu era um coloradaço de quatro costados, um entusiasta da camisa vermelha, talvez um frequentador assíduo da coreia, mas de qualquer modo um torcedor fiel e resoluto do Internacional. Na hora, cheguei a abrir a boca para dizer “alto lá, sou gremista” ou qualquer coisa de efeito semelhante, mas algo me deteve. Não sei o que foi, sinceramente – se foi pena de deixar o velho sem graça, se foi a vontade de evitar que eu mesmo ficasse sem graça ou qualquer outra coisa relativa a esses prováveis constrangimentos. O fato foi que eu respondi alguma coisa qualquer, disfarcei meu desconforto do jeito que pude e a conversa seguiu o seu amistoso rumo habitual.

Durante quase dois anos a rotina acabou sendo mais ou menos isso aí: eu saía de casa por algum motivo, encontrava o velho senhor que caminhava devagar e ficava uns dois ou três minutos fazendo o possível para que ele não percebesse que o colorado com o qual ele falava era na verdade um gremista sincero e convicto. Em minha defesa, fique registrado que nunca disse ser colorado ou fiz algo consciente no sentido de reforçar a opinião que o cidadão nutria a meu respeito: apenas respondia as perguntas com cordialidade, discorrendo sobre contratações e técnicos e posições em campeonatos. Nunca soube o nome dele, e tenho certeza que ele nunca me perguntou o meu. Éramos dois quase desconhecidos, unidos apenas pela proximidade das residências e pelo assunto Internacional. À época, o Grêmio lamentavelmente havia embarcado no Trovão Azul e viajado rumo ao Buraco do Amor da segunda divisão, e às vezes até se comentava em nossas conversas algo sobre o tricolor da Azenha – situações onde, evidentemente, eu era bem mais comunicativo e demonstrava muito mais entusiasmo nos comentários. De qualquer modo, duvido que ele, por um momento que seja, tenha achado que eu era outra coisa que não torcedor do Inter – e por muito tempo me vi eventualmente submetido a esse pequeno e inofensivo constrangimento.

Até que um dia o senhor sumiu. Demorou um pouco para eu me dar conta de seu desaparecimento: por acaso, enquanto eu voltava para casa um dia desses, me ocorreu a lembrança do senhor andando devagar que achava que eu era colorado e que eu nunca mais tinha visto, e fiquei me perguntando o que teria acontecido com ele. Na verdade, me pergunto até agora – só o que eu sei é que ele não mora mais no condomínio: o apartamento que era dele agora pertence a um jovem casal, que eu não sei quem são e que passam por mim e, por não me conhecerem, não me cumprimentam. Das duas, uma: ou o já bastante velho senhor tornou-se plenamente incapaz de morar sozinho e foi colocado em alguma clínica ou asilo, ou então morreu sem que sua passagem causasse maior comoção na vizinhança, não chegando assim o fato ao meu conhecimento. Não sei se ele teve a chance de acompanhar seu clube sendo campeão da América e do Mundo, ou se pôde recentemente vibrar com a conquista da Recopa. A verdade, enfim, é que não sei o que foi feito dele, e duvido muito que eu um dia volte a rever o velhinho que andava devagar e via em mim um companheiro na paixão pelo Internacional.

E agora me pergunto: será que eu deveria ter dito a ele que eu era gremista? Teria feito alguma diferença saber que o colorado de barba ruiva com o qual ele conversava na frente do seu prédio era na verdade um torcedor do Grêmio? Ou quem sabe ele até desconfiasse, mas mantivesse a farsa não-anunciada que havia entre nós pelo simples prazer de um dedo de prosa? Não sei, e não vou saber nunca. Mas é engraçado como as pessoas passam pelas nossas vidas e, mesmo que no fundo não tenham maior importância, acabam deixando sua marca, por mais indistinta que seja. Mesmo que eu encarasse as conversas como não mais do que um leve incômodo que não valia a pena desfazer, e que na verdade nunca tenha dado ao velho importância suficiente a ponto de perguntar qual era o seu nome, ele fez diferença – e daqui por diante sempre vou lembrar que, para pelo menos uma pessoa nesse mundo, eu era um colorado. Sabe lá Deus como, mas eu era. Espero que, de algum modo, tenha valido a pena.