sábado, 5 de abril de 2014

Essa cervejinha pode te destruir - ou, primeiros apontamentos sobre Brasília

[caption id="attachment_729" align="alignright" width="300"]Foto: Silvia Gomide Foto: Silvia Gomide[/caption]

Cheguei em Brasília debaixo de chuva e de espera. A água que caía do céu contradizia a informação dada pelo piloto ao sair de Porto Alegre: o tempo, segundo ele, era bom na capital federal. Não que a chuva seja tempo ruim, de qualquer modo: a cidade estava talvez menos efusiva do que esperado, mas não deixa de ser uma espécie de boas-vindas. A espera foi no desembarque, já que a pista estava cheia de aviões indecisos entre chegar e partir. Obras da Copa, me explicam todos - às vezes com sorrisos amarelos, em outras ocasiões adotando expressões faciais mais condizentes com sua insatisfação.

Ao meu lado na viagem sentou uma moça chamada Natália. Dezoito anos, nascida no Uruguai, com família lá e aqui. Vinha morar na casa da mãe, disposta a estudar Direito por aqui, mesmo acreditando que o ensino uruguaio seja muito melhor. "O que aprendesse lá não poderia usar aqui", explicou, com um sorriso bonito de insegurança e sincera simpatia. Falou bastante, mas não foi de forma alguma desagradável: parecia alguém com poucas chances de falar sobre certos aspectos de sua vida, e achei agradável ouvi-la, perceber as intromissões do espanhol em seu português de outro modo impecável. Não nos despedimos: subiu mais atrás no ônibus que nos levou à área de desembarque, pegou sua mala no outro extremo da esteira e logo desapareceu. Que Brasília seja boa com ela, é o que desejo do lado de cá.

Estou na Superquadra 416 da Asa Norte, no ponto mais distante da área central, da Praça dos Três Poderes, da Esplanada dos Ministérios e tudo mais. É uma área bastante arborizada e tranquila, onde os edifícios não vão além dos três andares e onde a impressão é de permanente fim de semana. Verdade que escrevo em uma noite de sábado, ou seja, é fim de semana de fato; mas mesmo nas manhãs e tardes de dias úteis as calçadas eram quase desertas de pessoas, os pássaros gritando entusiasmados nas árvores numerosas e ainda explodindo de verde. Todos parecem estar sempre voltando para casa no extremo da Asa Norte de Brasília - o que não é de todo ruim, já que sempre é bom ter uma casa para a qual se possa retornar.

Ainda não me acostumei com a ausência de esquinas, de qualquer modo.

Tudo divide-se em blocos, em quadras, em centros comerciais bem organizados em cada vizinhança. As grandes avenidas levam aos lugares de poder em linhas retas impositivas, competentes, que não hesitam em desvios ou cruzamentos. Mas o humano sempre vence: há carros demais, mesmo que asfalto também não nos falte. Chove e vira tudo uma bagunça, me diz um dos muito educados e prestativos taxistas da capital federal. Nenhum dos motoristas que me conduziram pela cidade era nascido nela: um era catarinense, dois mineiros, um capixaba. Trabalho com mais catarinenses, uma manauara, paulistas, gaúchos. O Brasil tem um pouco de si em cada lugar do Plano Piloto, o que faz sentido em uma cidade que nasceu para de certo modo resumir uma nação tão imensa e multifacetada.

Tenho agora um chip de celular local, o que me faz um pouco mais cidadão do Distrito Federal - algo que não sou nem serei, já que vou-me embora em menos de vinte dias, mas ainda assim é uma ilusão quase concreta em certos momentos. Estou aqui há poucos dias, mas já começo a entender parte da lógica única da cidade - ainda que, e essa é uma ressalva importante, ainda não tenha colocado meus pés em nenhuma cidade satélite. Imagino que o coração coletivo pulse diferente nesses lugares, como em todos na verdade: somos todos iguais, mas forjamos coisas muito diferentes quando estamos juntos.

No caminho para a residência onde me hospedo, um pequena casinha de madeira destoa da organização do comércio local. É uma sapataria, ainda que até agora eu só a tenha visto fechada. Suas paredes externas são cobertas de mensagens motivacionais e religiosas, escritas à mão com tinta preta e branca. Deduzo, após breve leitura, que o proprietário do estabelecimento abandonou o vício graças à intervenção de grupos ligados a alguma igreja, e tenta encorajar outras pessoas que estejam com o mesmo problema a agir de forma semelhante. Uma das mensagens, em especial, me salta aos olhos. ESSA CERVEJINHA PODE TE DESTRUIR, diz o aviso, as maiúsculas quase escondidas atrás de um assento de madeira.

Há espaço para a imperfeição humana, como se vê, mesmo em uma cidade que se pretende tão bem planejada, tão imponente e funcional. A humanidade triunfa, no fim das contas. Graças a ela, existe alma em meio ao concreto, seja onde for. Brasília tem alma; cabe a mim revelá-la.

De qualquer modo, tenho seguido a recomendação: desde que cheguei, não tomei um gole de álcool sequer.