domingo, 29 de junho de 2014

Ensaio: morte

Foto: Sippanont Samchai
Foto: Girish Gaikwad

Estou desaparecendo. Morrendo, se preferem. Um pouco de cada vez, às vezes mais do que o normal, mas sempre. Sinto a vida escorrendo de mim tal líquido de um vaso rachado - escapando pelas rachaduras, formando uma poça imperceptível, que chapinha silenciosamente a cada passo que dou. Estou morrendo. Logo não restará de mim senão a sombra, o calor do assento de onde me ergui; depois nem isso. Vou morrer e nada vai restar. Nada.

Quem lembrará do que nunca foi, quando eu for embora? Quem vai lamentar os caminhos jamais trilhados, quem vai sorrir ao lembrar do amores que tive e viveram eternos dentro de mim? Quem saberá de tudo que sei e nunca disse, das dores que só me permiti chorar sozinho, na madrugada, com as portas trancadas e as mãos cobrindo o rosto, para que nem os fantasmas pudessem me ver chorar? Quem sentirá as minhas saudades? Pois respondo: ninguém. Vai tudo acabar junto comigo. Sumir no espaço como um sorriso que ninguém viu.

Estou morrendo. Um pouquinho a cada dia. E já sinto saudades da vida.

Que coisa terrível, não? Sentir saudade da vida antes mesmo de morrer. É estar morto estando vivo, ou seja, um erro daqueles. Mas me consome. Não consigo fugir. Olho para as coisas como quem se despede, o tempo todo. Ando na rua dando um adeus a cada passo. Adeus, adeus. Já estou quase no fim: logo será a última vez. Adeus.

Às vezes, sinto que as coisas se despedem de mim. No mais das vezes, porém, elas apenas me contemplam em muda neutralidade, sem nenhum gesto de piedade, de compaixão. E por que deveriam apiedar-se de mim? O mundo está tão farto de morte! O meu partir nada tem de extraordinário, a não ser para mim. Meu mundo acabará comigo, isso é certo - mas tantos outros restarão! As coisas não se importam comigo, porque nada significo: o que importa é que haja vida, que persista o movimento, o fluxo do existir. Até que ele mesmo se acabe, sem que o universo derrame uma lágrima sequer. Simplesmente porque é assim que tudo é e deve ser. Porque é da natureza das coisas chegarem ao Fim.

Mesmo assim, sofro. Não quero morrer. Tenho medo. Olho para as coisas com a súplica de um suicida: digam-me para ficar, eu imploro. Digam que não preciso morrer. QUe minha vida importa. Eu não quero morrer; não deixem que eu morra, que eu mate a mim mesmo de forma tão terrível, um pouco a cada dia, às vezes um pouco mais, mas sempre.

Não há resposta, é claro. O que não quer dizer que o mundo me quer morto: apenas não é do feitio dele implorar pela vida de quem quer que seja.

Morrerei logo, de qualquer modo. Faltam poucas palavras; logo o livro estará pronto. E desaparecerei para sempre, sumirei na luz difusa, no brilho invisível que ilumina as trevas.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

A palavra

Foto: hmerinomx / Flickr
Foto: hmerinomx / Flickr

É um longo abraço. Com ânsia, urgência. Deve ter ficado surpresa: não é do meu feitio. Chega a fazer um tênue esforço para desvencilhar-se, mas a seguro firme um pouco mais e ela não mais resiste. Pelo contrário: percebo claramente que relaxa, surpresa talvez, mas agora em paz.

"O que houve?", pergunta ela quando finalmente nos separamos. Percebo que tenta soar o mais delicada possível.

"Eu senti frio", respondo simplesmente. Como ela nada diz, acrescento: "Não sei explicar. Senti muito frio. É isso. Aqui dentro, sabe?"

Acho que ela está realmente preocupada comigo.

Como dizer a ela?, uma parte da minha mente insiste em perguntar. Como é se diz uma coisa dessas a quem quer que seja?

Não se diz, respondo a mim mesmo. Não é possível dizer. A palavra tem limites: em certas circunstâncias, ela é uma prisão. Uma árvore não é uma árvore, por exemplo - ela é uma coisa incrível, um elemento mágico e único e lindamente indecifrável que nós, em nossa necessidade permanente de impor a escravidão, tentamos aprisionar em um punhado de fonemas precários, conter e controlar dentro de uma abominável palavra. Árvore. Árvore não é nada, é apenas um som estúpido, um atentando contra o silêncio e a compreensão. Aquilo que se ergue do outro lado da janela é muito maior, muito mais extraordinário e encantador e irrepetível do que a palavra árvore pode sequer começar a evocar. Árvore é raiz: a verdade daquilo que está do outro lado da janela é algo que aponta para o céu.

Não posso dizer nada a ela. O que carrego em mim não cabe em linguagem: explode em sentidos desconhecidos, transborda ao infinito, está em tudo e está além.

Será breve, mas é belíssimo.

"Não quer me falar?", ela insiste com suavidade. Com amor. Me ama. Muito. Ama a mim. Sequer me conhece - porque estive sempre escondido aqui, do lado de dentro. Esses anos todos. Nunca a deixei aproximar-se. E ainda assim me ama com toda a força de seu amar. A mim. Eu o sinto. E o que sinto me atinge com a força do universo inteiro.

Eu a amo de volta. O universo todo é testemunha. O universo todo só existe porque a amo, é do meu amor por ela que surge a matéria e o espaço. Nada existiu antes, nada pode existir além, porque meu amor por ela é o próprio tempo. O amor que por ela sinto é o farol que ilumina a eternidade.

E ainda assim nada posso dizer a ela. Porque não pode ser dito. Não pode.

Não pode.

"Não posso", acabo deixando escapar. Temo feri-la: um medo imediato, irracional e puro de amor. Então complemento. "Não pense mal de mim por isso. Por favor."

"Não penso", ela responde, imediatamente.

A tarde começa a rachar em pedaços. O céu agora é vermelho, um vermelho quase violáceo, uma cor que os olhos humanos não compreendem e, por não compreenderem, fingem que é vermelho, quase violeta. Vermelho como a vida que nasce e nasce de novo. Um vermelho terrível, inexorável. É vermelho, é belo, e logo nos esmagará.

Faz tanto frio, meu deus. Tanto frio.

Sem nada dizer, ela vem a mim e abraça-me de novo.

Sobre nós o vermelho começa a desabar. Vem vagaroso, silencioso. Vermelho quase violeta: a cor do fim do mundo, talvez. Engole tudo, muito devagar. Muito devagar. E ainda assim é quase imediato.

Fecho os olhos. Sinto o corpo dela junto ao meu: é a sensação que levarei comigo para o mundo que virá.

Estou salvo.

sábado, 7 de junho de 2014

A respeito das coisas que passam

[caption id="attachment_771" align="alignnone" width="1280"]Foto: jasonk / flickr Foto: jasonk / flickr[/caption]

"O Tempo passou."

"Onde? Eu não vi."

"Ali do outro lado da rua. Foi meio rápido mesmo, eu quase nem percebi também."

"Mas você tem certeza? Que estranho. Eu estava controlando ele. Não é possível ele ter passado sem que eu percebesse."

"Pois é. Eu estava distraído, mas consegui ver. Ele passou do outro lado da rua, olhando para as árvores atrás daquele muro ali. Está vendo? Cheguei a achar que queria roubar alguma daquelas frutas, mas não: só olhou e seguiu em frente. Também brincou com aquele cachorro vira-lata ali. E entrou ali naquele mercadinho: acho que comprou algumas balas ou algo assim. Saiu colocando duas ou três coisinhas na boca. Acho que eram balas mesmo, só podia ser. Mas a verdade é que, quando fui focar o olhar nele, já tinha ido embora."

"Hmmm. E como você viu tanta coisa, se ele passou tão rápido que eu não consegui ver nem ele passando? E eu estava olhando para lá!"

"Pois é. Não sei. É engraçado mesmo: foi eu olhar diretamente para ele e ele sumiu, desapareceu. Mas estava lá, eu tenho certeza. Eu vi. Ainda guardou o resto das balas no bolso e parou na frente do mercado, olhando para os lados. Parecia que não tinha bem para onde ir, mas não como quem está perdido, entende? Era mais como se estivesse dando um passeio ou algo assim."

"Hmmm."

"Eu juro que é verdade."

"Hmmm. E agora, se ele passou mesmo? O que a gente faz?"

"Não faço ideia."

"Pois deveria fazer. Fiquei esse tempo todo aqui, controlando o Tempo. Aí ele passa e desaparece. Quer dizer que foi tudo em vão? Isso não está certo."

"Eu sinto muito. Não tive tempo de avisar você."

"Não teve. É claro."

"É sério. Pode acreditar."

Caiu o silêncio. A tarde murchava, desvanecia-se em cinza. A calçada cobria-se de folhas secas.

Fazia frio.

"Acho que ele não vai voltar."

"Hmm?"

"O Tempo. Acho que ele não volta mais."

Nada disseram por instantes. Uma lufada de vento ergueu as folhas do chão, espalhou-as em novos arranjos inesperados.

"Não importa", disse enfim. "Vamos ficar aqui. Esperando por ele. Ele vai ter que passar de novo."