quarta-feira, 9 de julho de 2014

Nove de julho: anotações

Depois de trinta minutos de jogo, tínhamos um cadáver. Um corpo inerte, morto de forma brutal, chocante e quase incompreensível. Embora a fatalidade em si não fosse inesperada, ela surgiu com tamanha intensidade que deixou todos de joelhos, horrorizados, sem saber muito bem como reagir. Vivia menos de meia hora antes e agora estava morto, completamente abatido, destroçado, as vísceras espalhadas pelo gramado do Mineirão. E todos olhavam em direção ao corpo inerte, tomados pelo terror e náusea, confusos e aturdidos, tentando digerir o fato desesperador, mas incontornável: estava morta a seleção brasileira. Morta. Morta.

A partir daí, tivemos todos direito a cerca de sessenta minutos de velório.

Foi um velório perplexo, sofrido. Em torno do cadáver, as pessoas discutiam explicações, ofereciam consolos pobres umas às outras. Tentavam achar a autoria do crime. Umas falando por cima das outras, entremeando as discussões acaloradas com momentos de soturno silêncio. Houve quem bebesse ao morto, é claro - goles apressados, cerveja sobre cerveja, seja lembrando as antigas glórias ou tentando esquecer os defeitos do falecido. Havia, como em todo velório, quem fizesse piadas - algumas até boas, inclusive. Cada um tem seu modo de lidar com a dor da perda, e não nos cabe definir qual é a mais certa ou adequada. Todos sofriam, até os que não desejavam muito a sobrevivência do finado, e todos os sofrimentos têm expressões às vezes estranhas, mas sempre legítimas.

Agora, findo o velório, temos um longo período de luto e aceitação.

A manhã surgiu cinza e cinza ficou pela tarde adentro. Cinza espesso, mau-humorado. Cinza estão todos os lugares. Não é exatamente tristeza: as coisas, na verdade, estão estranhas. Há muitas dores no mundo e o futebol longe está de ser a maior delas - algumas dores geradas em suposto nome do futebol são bem mais doloridas, inclusive. Mas as pessoas sentem dor, isso é impossível negar - uma dor meio disfarçada, de quem sustenta um sorriso teimoso mesmo que sincero, de quem enxuga com a ponta dos dedos a lágrima que quer surgir no canto dos olhos. Vão ao trabalho, aos supermercados, pegam o ônibus, ficam em casa sem fazer nada se puderem. Observam pela janela o céu cinza, mesmo que azul. Ninguém morreu, talvez alguns pensem - e não estarão errados, evidentemente. Mas lamentam. Sentem pesar. E sente esse pesar mesmo quem não o sente, porque ele está no ar, está em tudo, em todos. Ele nos define. Estamos de luto, e está tudo tão diferente, tão estranho.

É só futebol, diz alguém ao longe, tentando convencer a si mesmo a partir da reação dos que o ouvem falar. Tem toda a razão, e ao mesmo tempo está errado. Porque o futebol não é só futebol. Menos ainda por aqui. O futebol pode não ser nada do que somos enquanto indivíduos, mas é parte do que somos enquanto todo. Para o bem e para o mal. E é o nosso coletivo que chocou-se com a morte que viu na tevê. É o nosso coletivo que viveu, ainda durante a partida, sessenta minutos de velório. E é o nosso coletivo que, agora, tenta achar sentido no que aconteceu.

É tudo irrelevante, insiste a pessoa em falar. Uma grande bobagem. Perdemos um jogo de futebol, só isso.

Todos sabem que é verdade.

Mas a verdade é o que menos importa. Ainda mais em momentos como esse, em dias cinzentos onde o desimportante é tudo que existe.