segunda-feira, 21 de maio de 2012

O caminho dos que andam com pressa

Publicado originalmente em 31 de maio de 2009

Sexta-feira, mais ou menos seis da tarde, esquina da Paulista com a Augusta, coração de São Paulo. Eu estava esperando por uma amiga, me preparando para umas cervejas e um pouco de conversa sobre a vida difícil dos gaúchos no coração de São Paulo. Tinha conseguido uma carona, então tinha chegado mais cedo, e matava tempo ouvindo música e vendo o movimento enquanto esperava ela chegar. Estava tranquilo, feliz de finalmente poder sair em uma semana de tempo ruim e de poucas coisas para fazer, e me sentia leve e sem maiores preocupações – tanto que em determinado momento me peguei fazendo um discreto “air guitar” no meio da rua, que é algo que eu realmente só faço quando estou muito distraído e relaxado. Deve ser algo extraordinário, um gaúcho de Porto Alegre fazendo “air guitar” em plena Avenida Paulista, mas enfim, não é disso que eu ia falar. Eu ia falar do cidadão humilde, baixote, usando um terno de tom marrom claro e com uma enorme Bíblia na mão, que apareceu em determinado momento no meio daquela confusão de pessoas que iam e vinham, numa das esquinas mais emblemáticas de uma cidade que, cada vez mais eu percebo, desafia categorização.

[caption id="attachment_255" align="alignnone" width="800" caption="Foto: Leandro Kanno"]Leandro Kanno[/caption]

Não vi de onde surgiu o homem, para ser honesto. Quando o percebi, estava próximo de mim, distribuindo para algumas pessoas pequenos panfletos de cunho religioso. Esperei que ele viesse a mim, e recebi o papel com um “obrigado” e um breve gesto de cabeça, ao qual o homem retribuiu com um sorriso de boca fechada, discreto mas dotado de considerável simpatia. Tenho ainda comigo o papel que ele me deu: uma pequena história sobre o encontro do fogo, da água e da oportunidade, seguida de uma pergunta do tipo “você gostaria de aceitar Jesus Cristo como seu salvador pessoal?” – coisa simples, feita para pessoas simples, talvez as mais propensas a abraçar os conceitos de fé de uma igreja evangélica. Distribuiu para mim e para algumas outras pessoas o pequeno panfleto, e depois posicionou-se no meio do passeio público, oferecendo aos que andavam o pequeno pedaço de papel que a mim havia dado pouco antes, tendo sempre o enorme volume da Bíblia repousando debaixo do braço.

Fiquei observando a cena. Era, acima de tudo, um contraste interessante: o homem parado, distribuindo pequenos panfletos com a Palavra que havia adotado como sua, enquanto a seu redor as pessoas passavam rápidas, velozes, apressadas, quase sempre indiferentes. Poucos foram os que vi pegarem o pequeno papel que a mão do homem oferecia, e talvez um ou dois tenham agradecido, no máximo. Os demais passavam reto pelo homem, sem sequer dar a ele a dignidade de um olhar, de um momento de atenção, preocupados que estavam com suas próprias vidas, problemas e pensamentos.

Acho que aquilo, de certo modo, abalou um pouco o homem. Acredito que, para ele, aqueles papéis eram algo muito sério, um tipo de presente que distribuía a desconhecidos, sem distinção de cor, gênero ou aparência, e para ele era desagradável ver que sua oferta era recebida com desinteresse, como se fosse apenas um incômodo, ou nem mesmo isso chegasse a ser. Na verdade, creio que ele faria a pregação de qualquer jeito – mas, confrontado com a falta de fé dos homens e mulheres que o cercavam, resolveu que era hora de tentar outra coisa, e de usar sua própria fé como modo de ser percebido ou, pelo menos, de quebrar aquele ruído repleto de silêncio com o som da sua voz e da mensagem que trazia dentro de si.

E pôs-se o pequeno e humilde homem a pregar ali, na esquina da Paulista com a Augusta, em plena hora do rush, andando de um lado a outro enquanto falava. Começou em tom um pouco baixo, que eu mal percebia por trás do som do meu mp3 player ligado, mas logo se empolgou, e começou a bradar a palavra de seu Deus com tal intensidade que nem o mais empedernido ateu poderia ignorar. Acabei cedendo a tanta emoção, desligando a música e emprestando meus ouvidos ao homem por alguns minutos.

Não saberia reproduzir com detalhes o que o homem falou – mas duas frases dele me causaram alguma impressão, indo além da pregação empolgada, mas que para mim sinceramente soava rasa e pouco comovente. Disse o homem em dado instante que os que por aquela rua passavam deveriam acautelar-se, e refletir sobre o rumo que davam a suas vidas. “Para onde vocês estão indo essa noite”, quase gritava, “para a alegria breve, para a depravação, ou para honrar a palavra de Deus? Quem vocês buscarão, o filho de Deus ou a companhia do Seu maior inimigo?”. Logo depois, disse o homem, com tom severo: “cada um escolhe seu caminho, e um deles traz a Vida, mas no outro só há a dor e a tristeza eterna”. Disse obviamente outras coisas, mas delas não lembro – e sua voz não tremia, antes ficava mais alta e empolgada à medida que os minutos iam passavam e sua pregação alcançava o clímax, exortando todos a juntarem-se a Jesus enquanto havia tempo e nem tudo estava perdido.

Enquanto ouvia essas e outras coisas, observava também as pessoas que passavam, e foi fácil perceber que ainda eram poucos os que davam ao homem mais do que um instante de atenção. Os que o observavam geralmente o faziam movidos pelo desagrado, não raro fazendo caretas e comentários jocosos sobre a situação. Próximos de mim, quatro jovens adolescentes, de talvez dezesseis anos ou um pouco mais, usando roupas coloridas e chamativas, conversavam entre si enquanto fumavam um cigarro de maconha – o que imagino que considerassem como um motivo de orgulho, ápice de sua revolta e rebeldia adolescente. Eram eles os mais debochados, os que mais abertamente atacavam o homem que estava envolvido naquela batalha de fé. Um deles jogou um papel de bala, outro aproximou-se dele e gritou algo que não ouvi, mas que não devia ser exatamente encorajador – e um deles chegou a oferecer ao homem a erva que fumava, com um olhar malicioso e um sorriso de desprezo estampado no rosto. E o homem, pelo menos externamente, não se abalou: contra os ataques dos fariseus sem fé, seguiu gritando aos quatro ventos a sua verdade, a sua crença, o que talvez julgasse ele ser ainda maior do que ele próprio.

Mais ou menos nessa altura apareceu minha amiga, que mais tarde me disse ter ouvido já do metrô a pregação que tomava conta da esquina. E me juntei a ela para irmos embora dali, não sem antes dar um último olhar ao homem que continuou na sua profissão de fé, provavelmente por muito tempo depois de eu estar presente para testemunhá-lo.

À primeira vista, eu mesmo me admirei um pouco de ter sentido simpatia pelo homem, e um certo desagrado de vê-lo ser alvo do desinteresse e, às vezes, da hostilidade daquelas pessoas. Não que eu tenha sido religiosamente tocado pela cena; não sou ateu, mas tenho sérias ressalvas às seitas e igrejas que produzem a fé sem reflexão, e digo sem reservas que a palavra do homem pouco ou nenhum efeito teve sobre mim, sendo incapaz de me provocar maior comoção ou mesmo interesse. Nesse sentido, não sou nem um pouco melhor do que as pessoas que passavam por ele sem olhá-lo ou destinavam a ele palavras e gestos de zombaria – pois sou um infiel como elas, alguém a quem a Palavra daquele homem, em si mesma, foi e possivelmente seja para sempre incapaz de tocar. Mas, se pouca afeição as religiões constituídas me provocam, sempre vejo com respeito e simpatia a fé individual, mesmo porque muitas vezes é para o seu portador tudo que há de mais valioso – e, no caso em questão, a fé daquele homem me fez refletir em coisas que não são exatamente produtos de qualquer religiosidade, mas ainda assim me provocaram certa impressão.

Acho que, de certo modo, me identifiquei com a posição dele – uma pessoa que se detém, que fica parada enquanto o mundo insiste em se mover, sem descanso e muitas vezes sem objetivo algum que não o próprio movimento. Comentei isso com minha amiga mais tarde, durante uma das mundanas rodadas de cerveja no Charm da Augusta: como o mundo insiste em ser rápido e incessante, e como é libertador conseguir não entrar nessa correria, como é apaziguador poder viver e observar um pouco as coisas, sem simplesmente passar voando por elas. Tinha uma razão meio torta, o homem – para onde iam com tanta pressa, no fim das contas, todas aquelas pessoas? O que as aguardava, o que iam buscar que era tão urgente, tão necessário, tão inadiável? Haverá para cada uma delas um motivo, um caminho a trilhar, ou estão muitas delas simplesmente andando, porque andando estão há tanto tempo que a idéia do que alcançar já se perdeu e as pessoas andam simplesmente porque andar se tornou em si mesmo a causa e consequência de tudo? As pessoas andam, riem, choram, bebem, amam, vivem e morrem todos os dias – mas quantas delas tem de fato algo que as anime, algum tipo de fé ou convicção na qual se segurar, e quantas no fundo fazem o que quer que estejam fazendo apenas para preencher esse vazio, essa falta de fé, talvez especialmente de fé em si mesmas? O que, no fim das contas, move tanta gente – e, em última análise, o que move a mim mesmo? O que eu quero, no fim das contas?

Parado ali, no meio daquela esquina, aquele homem pequeno e humilde tinha um objetivo. Um objetivo talvez questionável em eficiência, em conveniênca ou mesmo em princípio – mas ainda assim algo que o levava a parar, algo que para ele é um norte, um caminho a seguir. E não deixa de ser um pouco triste que eu, pessoa sem maior apreço pelas religiões e que definitivamente não compartilho da imensa maioria de suas crenças e métodos, tenha sido talvez o único a ver aquilo com alguma consideração, e ainda assim tirando ali um pensamento que certamente não era o que ele gostaria que eu tivesse. De qualquer modo, embora eu saiba que ele muito provavelmente jamais lerá esse texto, gosto de imaginar que serviria para ele de alegria e consolo saber que, por vias tortas, suas palavras atingiram a mente de alguém. Da minha parte, vou tentar seguir sem pressa, olhando as pessoas pelas esquinas da vida – mesmo porque, sinceramente, não acho que eu seja capaz de agir de outro jeito, e ainda há tanta coisa para ver e para contar.

A foto, que aqui uso de forma meramente ilustrativa, é de Leandro Kanno. Espero que ele não se importe com esse empréstimo; obviamente, retirarei a imagem do blog caso assim deseje. De qualquer modo, agradeço pela ótima imagem, que bem ilustra o palco desta pequena história e observação.