segunda-feira, 22 de abril de 2013

Ensaio: antes da chuva

[caption id="attachment_442" align="alignnone" width="640"] Foto: likeyesterday / Flickr[/caption]

- Só os homens amam, sabe? Cheguei a essa conclusão – estava dizendo ele, quando consegui alcançá-lo e cruzamos a porta em direção ao pequeno pátio que conduzia à saída. – Essa estupidez. Só a gente mesmo. Mulher não se preocupa com essas coisas. Isso é coisa de homem!

- Não fala besteira – respondi. – É claro que mulheres amam também.

- Talvez amem – continuou, inflamado, empolgando-se no raciocínio. – Mas não amam seres humanos, entende? Amam fantasias. Uma mulher está eternamente apaixonada por um homem de conto de fadas, e nunca consegue enxergar o que a gente é de verdade. É da natureza da mulher, elas precisam se decepcionar com os homens para se sentirem realizadas, então elas nunca vão querer o que a gente pode dar para elas, entendeu? A estupidez é nossa, de pensar algo diferente.

- Quanta besteira – suspirei, esperando que ele não me ouvisse. Mas não foi baixo o suficiente.

- Claro que é besteira – quase gritou, enquanto atravessávamos a porta de saída e ficávamos sós na noite fria e inchada de nuvens de chuva. – Tudo é uma grande besteira! Não existe nada mais idiota nesse mundo do que perder tempo sentindo algo por alguém! – e parou no meio da rua, me olhando com raiva e desespero. Eu quis desviar o olhar, mas não consegui. – Por que perder tempo com essas coisas? Ninguém se importa! Por que a gente não desiste de tudo, que é muito mais fácil?

Calou-se. Ficamos parados por instantes, olhando um para a cara do outro, e os olhos dele pareciam pequenas bolas de luz cinzenta brilhando opacas na escuridão. Eu me sentia tão pequeno diante daqueles olhos! Aquele era sempre o pior momento. Era sempre naquele instante que eu me arrependia de ter saído de casa, de ter ido de novo oferecer meu apoio e meu ombro amigo, de mais uma vez ter me submetido ao papel secundário que sempre me restava naquela história. Mas no fundo eu acho que sempre soube que aquele era o meu papel, e não por imposição: eu mesmo o havia escolhido, me acostumando a ele e aprendido a interpretá-lo com cada vez mais perícia na medida em que passavam os dias, as semanas, os meses. A vida. A minha vida.

- Eu não sei – disse eu, antes mesmo de me dar conta que estava falando. – Talvez não seja mesmo para dar certo nunca. Talvez a gente tenha medo que dê certo, vai saber. Talvez no fundo seja tudo muito fácil se a gente simplesmente viver as coisas, ao invés de tentar entendê-las, e mesmo assim a gente tenha essa necessidade de complicar tudo, de sempre querer mais do que a gente pode ter. Talvez a gente enxergue tudo muito bem, mas olha para o lado e faz de conta que não viu porque é mais fácil continuar procurando do que admitir que a gente encontrou. Talvez a gente esteja vendo o tempo todo, mas tenha medo de tentar alcançar. Talvez a gente só esteja perdendo tempo, tentando achar em outra pessoa o que está ou deveria estar dentro da gente o tempo todo. Quem sabe? Pode ser que tudo isso seja bonito justamente porque é sem esperança. – e me calei, engolindo em seco o ar frio e com gosto de terra que antecipava a chuva daquela madrugada.

Não desviei o olhar. Nem tanto por desafio, ou por querer provar alguma coisa: simplesmente não desviei porque não seria capaz. Fiquei ali, vendo o rosto dele desanuviando-se aos poucos. As olheiras pareciam ainda mais fundas na luz fraca da rua vazia, mas mesmo assim sua expressão foi assumindo um ar mais calmo. Fechou os olhos, sacudiu brevemente a cabeça como quem faz um gesto com cuidado para não ficar enjoado, e disse, em voz alta:

- Ah, quer saber? Vamos embora. Por hoje já chega.

E foi andando, ainda cuidando os passos, ainda fingindo que não estava bêbado e que tinha pleno controle de suas pernas. Fiquei admirando a cena por alguns segundos, enquanto alguma coisa densa e incômoda escapava como um suspiro por entre meus lábios. Então, fui atrás dele.