sábado, 20 de abril de 2013

Manhã de domingo

Quando percebeu que não havia mais nada a discutir e que nenhuma palavra conseguiria preencher o silêncio daquela casa, pegou o violão e saiu. De todas as coisas suas que estavam lá, era a única que não podia suportar deixar para trás. Pegou o violão velho e descascado em um gesto cuidadoso de um pai que pega o filho pela mão, e saiu para a rua em silêncio, sem dar adeus, sem bater a porta, sem barulhos e sem confusão. Naquela situação cheia de silêncios, sua retirada foi mais um deles; e quando sentiu sobre si o sol daquela manhã de domingo, sentiu-se de certo modo apaziguado, como quem se percebe vazio, mas não recorda o suficiente do que está faltando a ponto de sentir-se incomodado com isso.

O sol estava forte, apesar de ainda ser bem cedo, provavelmente o começo de mais um dia de muito calor. A sensação era revigorante para ele: tinha sido uma noite longa, de muita penumbra e poucas palavras, de sombras movendo-se lentamente nas paredes sem trazer em sua marcha nenhuma resposta ou consolo. Sair daquela casa e encontrar o sol foi como sentir a verdade do mundo sendo restabelecida, e mesmo que a sua mente estivesse alheia à maiores reflexões foi capaz de sentir essa mudança como algo animador e positivo. Não havia muita gente na rua, eram poucos rostos para ver, mas isso não fazia diferença: aquele momento de irresponsável e temporária liberdade era seu, e assim o aproveitou enquanto andava em silêncio pelas calçadas da cidade que despertava.

Não andou muito, na verdade. Assim que viu uma escada que julgou adequada sentou-se, com a naturalidade de quem relembra algo que há tempos não fazia, e acomodou o violão no colo. Testou a afinação, dedilhou dois ou três acordes, mas logo parou. Ficou observando os prédios ao redor, os jogos de luz e sombra causados pelo sol da manhã, a mente distante, os pensamentos mais sensações difusas e distantes do que ideias de fato. Um pouco à frente, uma parada de ônibus concentrava boa parte da movimentação da manhã, e deixou-se contemplar aquele pequeno desfile de pessoas – jovens senhores de mochila indo visitar suas mães, mães ralhando com os filhos, adolescentes arrastando-se ao final da noitada, idosos passeando ao sol. Homens e mulheres que não conhecia, e que muito provavelmente jamais viria a conhecer. Vida que era alheia a ele e com a qual mesmo assim ele sentia um estranho tipo de cumplicidade, como se houvesse entre os envolvidos um acordo tácito e silencioso. A manhã os fazia de certo modo todos iguais, todos vitoriosos na tarefa de chegar a um novo dia - e nisso havia, se não alegria, uma espécie de orgulho os unindo no silêncio dos que haviam chegado a um objetivo comum.

Quando cansou de apenas olhar, posicionou as mãos sobre o instrumento e começou a tocá-lo. Apenas acordes soltos no início, enquanto lembrava de tempos passados, quando sentava em escadas como aquela, com violões velhos como aquele, em dias ensolarados como aquele. Lembrou daquela cumplicidade de amigos unidos pelas circunstâncias, pelas mesmas dúvidas e carências, que não tinham nada pelo que esperar e não tinham nada a não ser tempo para gastar. Era mais jovem, tinha feito menos coisas, mas ainda era o mesmo, e isso não era bom nem ruim, era apenas um fato como tantos outros. Lamentou por um breve instante não ter quem sentasse ao seu lado naquela escada, mas foi apenas um momento; as notas iam sucedendo umas às outras de modo menos casual, tomando corpo enquanto a voz surgia, baixa, apenas para si mesmo e para mais ninguém. Começou a cantar de um homem que trabalha o mais que pode para continuar sozinho, e sobre como quando a história faz seu giro ela acaba deixando um homem partido atrás de si. Muitas vezes tinha sido assim com ele, e muitas vezes talvez voltasse a ser do mesmo modo; era o mundo, era a vida, e não era cruel nem triste, era apenas o modo como as coisas funcionavam. De qualquer modo, sentiu-se só, e pela primeira vez desde que saíra para o sol lembrou-se do que tinha deixado para trás. De novo, foi um sentimento neutro. Talvez alguém pudesse chamar de tristeza, mas não era bem o caso. Já tinha ficado triste demais, por vezes demais, pelos motivos mais tolos e pelas razões mais nobres - agora sentia apenas um incômodo, um sentimento de quem se conforma com algo que não está realmente certo, a melancolia branda das coisas não feitas e que ficarão para sempre como resquícios da memória do que nunca foi. Das coisas que fizeram diferença, mesmo que nunca tenham feito diferença de fato. Quando as luzes se apagavam na sua casa, isso me fazia feliz, cantou ele enquanto pensava nessas coisas. E ninguém ouviu, e não fez muita diferença se ouviam ou não.

Como você se sente, como você se sente em estar sozinho, ele perguntou a si mesmo. Estava sozinho; havia estado sempre sozinho, na verdade. Sozinho entre as pessoas, andando pelas ruas cúmplices de sua solidão. Como um completo desconhecido, para todos e para si mesmo. Ninguém se importava, e não era como se devessem se importar; estavam todos na mesma, sozinhos em si mesmos, irmãos unidos no acordo silencioso dos invisíveis de todos os dias e de todas as ruas. Assim tinha sido ele, desde sempre: um solitário entre as pessoas, alguém que anda sem pensar para onde vai, alguém que sai sem bater a porta e sem olhar para trás. E havia se acostumado a isso, havia se acostumado a nunca se comprometer com nada, a não fazer acordos, sem direcionar-se para pessoas que pudesse chamar de amigos e lugares que pudesse chamar de lar. Como você se sente? ele se perguntava enquanto tocava um dó não muito competente. E ele não sabia, na verdade ele não sabia. Em algum lugar da sua mente, sentia que queria saber, que queria ter uma direção, deixar pessoas entrarem no seu mundo, e que tinha tentado isso de forma consciente ou não por um grande número de vezes. Não tinha conseguido, mas ao mesmo tempo não sentia que não tivesse feito as coisas do jeito certo. Como você se sente?, perguntou de novo a si mesmo, quase num sussurro. Não sabia, respondeu de novo a si mesmo. Em sua mente surgiu como um raio a certeza de que não tinha nada, que não tinha coisa alguma para chamar de sua, nada com que pudesse contar ou em que pudesse se segurar. De sua jornada, nada trazia consigo. Mas quando você não tem nada, você não tem nada a perder, cantou. E de alguma forma, foi capaz de sorrir.