sábado, 3 de agosto de 2013

Passos na chuva (I)

[caption id="attachment_563" align="alignnone" width="1024"]Foto: Henti Smith Foto: Henti Smith[/caption]

Foi numa noite de chuva que ele saiu para nunca mais voltar. Lembro muito bem: era uma chuva igualzinha a essa, de gotas grossas e insistentes, chuva que bate no asfalto com um barulho que lembra coisas que já não existem senão dentro de nós. Uma chuva de noite fria, daquelas geladas mesmo. E foi justamente em uma noite como essa, exatamente como essa, que ele calçou um par de botas, vestiu uma capa de chuva por cima das roupas de ficar em casa e saiu. Não sei quando volto, ainda lembro dele dizendo, em voz não muito alta, como quem não quer fazer muito alarde de si mesmo. Mas olha essa chuva, onde é que você vai, ainda perguntei. Vou caminhar, foi o que disse, e então disse de novo Não sei quando volto, e foi em direção à porta sem falar mais nada. Passou duas voltas na chave antes de sair. O último som que dele ouvi foi seus passos sumindo no corredor, rumo às escadas.

Não olhei pela janela, então não sei que rumo tomou.

Desde então, sigo aguardando que retorne. Mesmo quando faz sol, mesmo quando há calor e a luz da grande estrela brilha quase insuportável nas janelas do outro lado da rua, mesmo assim sinto que ainda chove em algum lugar, que em algum ponto do mundo ainda é céu fechado, que ainda faz frio em alguma esquina distante muito além dos meus sentidos. Porque ele segue caminhando lá fora, e a chuva o acompanha onde quer que ele vá; isso eu sei, acima de dúvidas.

Será que ele volta, algum dia?

Quando chove do lado de fora, assim mesmo do modo que está chovendo agora, essa chuva fria que bate no asfalto e faz um som que a gente escuta mais aqui dentro da gente do que em qualquer outro lugar - nessas noites eu fico aqui, sentado de costas para a janela, sem olhar para a porta, esperando ele voltar. Aguço os ouvidos e tento escutar qualquer coisa além do som monótono e insistente das gotas no asfalto. Quero ouvir os passos familiares no corredor, a chave girando lentamente na porta que me separa do mundo e que não me animo a deixar aberta. Quero vê-lo usando a mesma capa de chuva, as botas sujas molhando o chão, a voz dele se erguendo apenas o suficiente para ser ouvida enquanto diz Eu sei, acabei demorando um pouco, desculpe.