sábado, 24 de agosto de 2013

Passos na chuva (II)

[caption id="attachment_442" align="alignleft" width="269"]Foto: likeyesterday / Flickr Foto: likeyesterday / Flickr[/caption]

A primeira parte da história pode ser lida aqui.

Deteve-se debaixo da marquise em uma decisão súbita, de improviso. Era estreita: precisou encostar-se de corpo inteiro na parede do prédio, as costas completamente alinhadas com o concreto para evitar que um dos ombros ficasse exposto à chuva agora fraca, mas sem dar sinais de ceder. Não que fosse uma precaução muito útil, já que estava completamente molhado há dias, mas parecia justo que ao menos naquele momento as gotas insistentes deixassem seu corpo em paz.

Chovia há tanto tempo que ele era incapaz de calcular.

Espanou os ombros com as mãos, tentando remover a água acumulada nas dobras da capa de chuva. Deu pequenos chutes no ar, como quem tenta acomodar melhor as botas plásticas nos pés. Removeu o capuz. Tossiu.

Seu lar estava distante. Não sabia mais se estava indo em direção a ele ou afastando-se: haviam sido ruas demais, esquinas todas parecidas demais, muitas poças d'água, muitas marquises. Havia andado muito, quase sem pausas: dos lugares por onde agora andava, tudo desconhecia. A única constante era o mau tempo. Sempre o mesmo céu cinzento, a mesma chuva fina e persistente. O som monótono da água caindo nos telhados, nas calçadas. Pouco vento. Nenhum relâmpago.

Onde quer que fosse, a chuva ia com ele.

Tinha saído de casa do modo como costumava fazer todas as coisas: ao sabor do momento, sem planejar nada, atendendo o chamado surdo de um impulso sempre mais forte do que ele próprio. Tinha sido uma semana de alguns gritos e muitos silêncios, de olhares que tudo observavam e julgavam, sem jamais cruzarem um com o outro. Viu na chuva uma chance de limpeza, de fugir ao silêncio acusatório daquela casa e finalmente ter a chance de ouvir os próprios pensamentos. Apenas jogou a capa de chuva sobre as roupas gastas, calçou as botas e murmurou uma despedida pobre, algo sobre estar de saída e não ter hora para voltar. Ninguém tentou detê-lo e então ele foi em direção à chuva, ajeitando o capuz sobre a cabeça, fechando o último botão logo abaixo do pescoço, escondendo as mãos dentro dos bolsos enquanto lamentava não ter pego luvas para aquecê-las.

Só mais tarde entendeu que a chuva, na verdade, queria capturá-lo.

Como voltar?, perguntava a si mesmo. Os ecos da briga terrível já haviam há muito silenciado dentro de si. Sentia que, se reencontrasse sua trilha, a volta ao lar não seria de palavras ásperas e ressentimentos, mas um reencontro suave, de silenciosos pedidos mútuos de perdão. Desejava voltar. Estava, porém, cercado pela estática da chuva; o ruído das gotas contra o asfalto era ele próprio um estranho silêncio dentro de sua alma. Não sabia onde estava. Não fazia ideia de que rumo tomar, qual a esquina correta, por quais ruas seguir. Andava a esmo, buscando uma súbita compreensão que indicasse a trilha de retorno para si mesmo.

Nada havia. Apenas o som fraco e insistente da chuva ao seu redor.

Vestiu o capuz. Olhou brevemente para a rua silenciosa diante de si: janelas fechadas, poucas luzes acesas. Uma pequena cerca protegia os limites de um terreno baldio.

Lançou-se novamente à rua. Em um abraço apertado, a chuva uniu-se a ele.