segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Senhor Gelado

[caption id="attachment_678" align="alignleft" width="200"]Foto: Miles Heller Foto: Miles Heller[/caption]

Como ninguém me vê, precisei inventar um nome para mim mesmo. Para existir de verdade, sabe? As coisas só existem na medida em que podem ser vistas ou vivenciadas; assim são as pessoas, e assim sou eu. O que se mostrava um problema para mim, na medida em que ninguém me enxerga, ninguém pode me tocar, me ouvir ou sentir. Era meio angustiante, existir sem provocar reação, sem nada fora de si para comprovar a própria existência. Por vezes pensei que fosse loucura; em outras ocasiões, como agora por exemplo, penso que sou não mais que o pensamento vago de uma mente preguiçosa, incapaz de dar um contexto a uma ideia que acaba de lhe ocorrer. Um personagem sem história, entende o que digo? Nada agradável. Então imaginei que talvez dar um nome a mim mesmo pudesse ajudar. Uma identidade, compreende? Pelo menos uma coisa que fosse particular minha, uma singularidade, algo que criasse ao menos uma ilusão de pertencimento. Todo mundo tem um nome, não é mesmo? Se quem me imaginou esqueceu deste detalhe, então eu mesmo preciso tomar a iniciativa.

Muito prazer, me chamo Senhor Gelado.

Resolvi me chamar Senhor Gelado porque sinto frio, sabe? Muito, muito frio. Deve ser uma característica de quem não tem uma forma muito definida, não sei. Deduzo isso porque ninguém interaje comigo de forma alguma, então eu não devo ter nenhum tipo de característica tangível ou perceptível. E porque sinto frio, claro. As duas coisas devem ter algum tipo de ligação. E chamar a mim mesmo Senhor Invisível ou Senhor Sem Forma ou mesmo Senhor Fantasma talvez fosse até mais correto, mas me parece que Senhor Gelado combina mais com a minha situação, percebe? Porque coisas geladas remetem a  algo que ninguém toca e a lugares onde ninguém vai, e é exatamente nessa posição em que me encontro: sou inalcançável, e ninguém jamais caminha em minha direção.

Do meu propósito no mundo sei muito pouco. Creio que este seja o meu principal problema: fui pensado não enquanto personagem, muito menos enquanto enredo, mas unicamente como uma circunstância. Essa é uma palavra ótima, aliás: de fato, sou uma circunstância. Me vejo andando devagar pelos caminhos mais solitários, por calçadas de pedras soltas em esquinas onde o sol não consegue mais incidir. Desço por uma escadaria deserta, que me leva a rua de pouco movimento. Todas as janelas estão com luzes apagadas. Ando longamente por uma interminável avenida pela qual poucos carros passam. Um relógio de rua vai me informando as horas, primeiro bem ao longe, depois mais perto. Quatro e vinte da madrugada. Quatro e vinte e sete. Quatro e quarenta. Pego um atalho por uma viela estreita, espremida entre as paredes de um viaduto. Uma praça. Um hotel abandonado. Um velho trilho de trem. Termino em uma espécie de passeio público, um grande espaço vazio de pessoas, iluminado por luzes amarelas, quase apagadas. É uma trilha sentimental. Quase me emociono quando ela se encerra. E talvez me emocionasse de fato, soubesse eu o que me faz andar por esses caminhos.

É sempre inverno, mesmo que faça calor.

Que motivo me leva a andar por esses lugares eu não sou capaz sequer de imaginar. Apenas ando por eles, não é mesmo? E melhor não poderia descrevê-los porque pouco se esforçou, a mente que me criou, em imaginá-los. Por vezes, acho que carrego uma valise; em outro momentos, visto um sobretudo preto, pesado, que não é lavado há anos. De vez em quando desejo ter luvas; minhas mãos estão sempre dormentes de frio. Do meu rosto não sei detalhe algum, porque jamais me ocorre olhar meu reflexo em algum carro estacionado, alguma janela vazia. Não sei que som tem minha voz porque nunca tenho vontade de dizer qualquer palavra em voz alta. E nem haveria a quem dizer coisa alguma, porque está tudo sempre vazio.

É uma cidade fantasma, entende? E é toda minha. Não há outros personagens aqui. E nestas ruas nenhuma história acontece.

De vez em quando chove. Chuva congelante, fina. Nunca há relâmpagos. Quase nunca há som algum, na verdade. Quando chove é um pouco melhor: posso ouvir os sons dos meus passos nas poças d'água. Ou ao menos imaginá-los, é claro. Porque eu não piso de verdade nas poças d'água: é uma ilusão que uso para fingir que existo de verdade. Não que eu consiga me enganar por muito tempo, não é? Mas acho uma ideia bonita: um homem chamado Senhor Gelado, andando sozinho na chuva, as mão escondidas dentro de um sobretudo preto que nunca enfrentou uma lavanderia. Sozinho numa cidade imensa e deserta, ouvindo apenas os sons dos próprios passos enquanto repete a mesma trajetória sentimental, uma vez mais. Em que estará pensando? Lembra de alguém? Lamenta um grande erro? Busca uma resposta? Tenta calar alguma dor profunda dentro de si?

Sou uma circunstância, como bem disse. É neste momento que algo precisaria acontecer: algum evento, alguma pessoa, alguma memória que preenchesse essas premissas com uma imitação convincente de existir. Nada surge, porém. Porque quem me imaginou já desistiu de mim. Está pensando outras histórias, com outros personagens, em cenários mais elaborados. Personagens com um nome, tenho certeza disso. Duvido que qualquer um deles tenha precisado inventar o próprio nome.

O corredor é estreito. As paredes estão cheias de desenhos, pinturas e escritos. Uma delas grita algo em grandes letras redondas; não consigo ler o que está ali. Deve ser importante, de qualquer modo, senão eu nem mesmo o perceberia. Vamos dizer que fala de amor, que tal? Chove fraco - gotas finas, que brilham nas poças d'água. Hoje estou de sobretudo; acabo de fechar o penúltimo botão, bem perto do pescoço. Sou o Senhor Gelado e esta noite está fria como nunca.