sábado, 1 de fevereiro de 2014

Um estudo: fantasmas

Há um fantasma naquela esquina. Um fantasma que é só meu.

Eu o enxergo todas as vezes, sem exceção. Entre o cinza da calçada e o vermelho desbotado da pintura já gasta, em meio às multidões desconhecidas que vêm e vão. A chuva molha o asfalto cheio de falhas, o calor sangra nas paredes ásperas, o sol se esconde atrás dos prédios que roubam o céu para si. E o fantasma segue lá, indiferente a todas as coisas, sem saber que eu o observo. Ele é o fantasma; eu sou o observador. Sou eu, portanto, quem está invisível. Eu o vejo, mas ele certamente não enxerga a mim.

Há algo estranho e terrível no modo como a gente descobre um fantasma. Ele está lá o tempo todo, sabe? A gente é que, por distração, demora para enxergar. É como um detalhe discreto de uma pintura complexa, é como finalmente entender a letra de uma música que muito se escutou. Está sempre lá, mas é como se jamais houvesse estado; nossa atenção oscila por um instante, e então surge. E enxergar o fantasma é ainda pior, porque ele nunca mais desaparece. A partir do instante em que você o vê, ele passa a ser o seu fantasma e depende de você para existir. De seus olhos, sua presença. Ele só existe na medida em que você está lá para contemplá-lo - e para você, somente para você, ele existirá para sempre.

O meu fantasma é o fantasma de uma cena que não vi, na verdade. O fantasma de alguém que vai-se embora. A despedida é sempre tão importante, não? É preciso abraçar forte, dizer as palavras todas, ouvir, responder. De certo modo, toda despedida é para sempre, todo até logo é um nunca mais. Hoje eu sei essas coisas; não as sabia então. Fui embora sem olhar para trás, enquanto o fantasma surgia na cena que deixei para trás. Esperou muito tempo por mim, imagino. Até que um dia o enxerguei. E desde então o fantasma segue lá, sempre visível justamente por nunca ter sido contemplado, eternamente presente na memória de minha imaginação.

Às vezes sento no bar da esquina oposta, sempre do lado de fora, mesmo que faça frio. Peço uma cerveja. Quase não bebo; o líquido esquenta no copo, deixo a garrafa pela metade. Fico contemplando aquela esquina assombrada, revendo a cena inexistente. Os passos indecisos. Uma pessoa que se vai.

Na minha imaginação, ela sempre olha para trás.

É o pior momento. Porque sei que aquela pessoa se volta e não encontra o meu olhar. Estou indo embora, de costas. Decidido. Não detenho meus passos.

Hoje contemplo o fantasma. Mas já é tarde demais: ele infelizmente não me vê, por mais que sempre tente. Sou eu que observo, no fim das contas. Invisível. Preso ao tempo que não volta para trás.