quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Um fim de tarde chuvoso no Canindé

Foto: M.J. Ambriola/Flickr
Foto: M.J. Ambriola/Flickr

Quando falam na Portuguesa - vocês sabem, a Portuguesa de Desportos, a equipe de futebol envolvida no escândalo da escalação irregular do jogador Héverton e que recentemente caiu para a terceira divisão brasileira - eu sempre lembro de uma simpática senhora que vendia refrigerantes e doces nas redondezas do Canindé.

Domingo, final da tarde. Na época, eu morava em São Paulo e tinha ido assistir o último jogo da Portuguesa no Campeonato Paulista de 2009. Choveu bastante no intervalo do jogo, e ao final da partida a chuva retornou, ainda mais forte. Eu vinha me protegendo como podia; após uma amainada especialmente acentuada da chuva, achei que dava para encarar e rumei a passos rápidos em direção ao metrô. Eis que de repente a chuva volta ainda mais forte, imediata e inclemente, como quem tem pressa de ensopar o mundo inteiro. Não havia onde me proteger, e logo estava completamente ensopado. Desgraça.

Após momentos de relativo desespero, vi uma solitária vendedora ambulante, senhora humilde e de certa idade que carregava um isopor cheio de bebidas que ela não ia conseguir vender naquele dia. Com a iminência do aguaceiro, havia aberto um velho e furado guarda sol para proteger o seu negócio. Não tive dúvida: fui até lá e, mesmo que já não fizesse lá muita diferença, parei algum tempo ali para tomar uma Coca Cola e esperar a chuva amainar um pouco. Um rapaz já tinha tido a mesma idéia, então ficamos os três debaixo daquele teto frágil e bem-vindo, esperando a clemência, mesmo que parcial, de São Pedro.

A senhora era daquelas que não compreende a presença de seres humanos senão como motivo para a conversação. Um tipo humano que em geral me agrada sobremaneira, diga-se. Em poucos instantes já falava animadamente sobre seu trabalho e sobre as peripecias que passou para chegar ali, no entorno do Canindé. Segundo suas palavras, ela e seu filho (que estava dentro do veículo que os havia trazido até lá) estavam em Anhanguera, num show promovido por uma empresa que não consegui descobrir qual seria – mas o movimento estava fraco, então os dois julgaram ser mais inteligente ir até o jogo da Portuguesa vender bebidas aos torcedores. Claro que a chuva arruinou os planos, mas ela não se arrependia: gostava muito de trabalhar naquele lugar, onde sempre ocorriam eventos interessantes e onde sentia-se privilegiada e compreendida pela direção do clube. "Esses portugueses são trabalhadores e respeitam o trabalho dos outros", garantiu-me, e contou um episódio para provar a veracidade do que dizia.

Embora naquele momento estivesse comercializando apenas refrigerantes e água mineral, os produtos de maior destaque em sua barraca eram os doces e bolos, que ela mesma produzia em sua casa. "Nos jogos maiores vendo tudo e ainda tem gente que vem comprar e não encontra, vocês nem imaginam", acentuou orgulhosa. Em uma partida de maior público, na qual a senhora recém havia chegado com seus produtos, a vigilância sanitária apareceu. Sem muita vontade de dialogar, a fiscalização já se preparava para levar embora toda a mercadoria quando o presidente da Portuguesa à época (doutor Manuel da Conceição Ferreira, como acabo de conferir) resolveu intervir. Acompanhado de uma outra pessoa (que segundo ela "ficou quieto, só na moita"), o dirigente deu uma descompostura nos fiscais: disse a eles que aqueles ambulantes não estavam na rua, mas sim em terreno pertencente à Portuguesa, que eles estavam autorizados pelo clube e que a fiscalização não tinha qualquer autoridade ali por tratar-se de propriedade privada. "Ele apontou para mim", disse a senhora, "apontou para os meus doces e falou: mas que maldade a de vocês! Me digam, em quê essa senhora está prejudicando o governo? Vocês acham que essa senhora está aqui, trabalhando, porque gosta? Ela está aqui por necessidade, ganhando dinheiro de forma honesta, não está fazendo mal para ninguém".

O tom de gratidão era perceptível na voz daquela senhora. Decerto sentia-se engrandecida enquanto ser humano, uma pessoa humilde que vende doces e é defendida pelo presidente de um clube de futebol. Um sentimento diferente do que ela parecia dedicar aos responsáveis pelos cultos em igrejas evangélicas. Mais de uma vez a fiscalização havia aparecido e recolhido tudo que ela estava vendendo – e quando ela protestava, dizendo que ela mesma tinha feito aqueles doces e pedindo para que não levassem tudo embora, os fiscais respondiam que, por eles, não fariam nada, mas os próprios pastores haviam ligado exigindo que eles tomassem uma atitude. "Que coisa triste. Eles, que tinham que entender as necessidades da gente, fazem uma coisa dessas", disse a vendedora, um toque de mágoa na voz e no olhar. Fiquei pensando em como era curioso que um negócio tão básico e humilde incomodasse um outro tipo de negócio, muito mais lucrativo. Mas preferi não falar nada. Fiquei ali, escutando a agradável conversa da velha senhora, até que a chuva deu uma trégua, o filho dela insistiu para que fossem para a casa e nos despedimos, cada um seguindo seu caminho na metrópole encharcada pela chuva que agora já quase não caía mais.

Não acho que exista conclusão nessa história. O Dr. Manuel da Conceição Ferreira, ou Manuel da Lupa, é apontado por alguns como envolvido no esquema que supostamente vendeu o rebaixamento da Portuguesa para um terceiro interessado, usando a escalação irregular de Héverton como pretexto. Se esteve de fato comprometido ou não, confio que o Ministério Público será capaz de apontar. Não me interessa aqui fazer dele qualquer imagem, mesmo porque não é ele o personagem principal: é a velha senhora vendedora de doces e refrigerantes que me ofereceu teto durante uma chuvarada em São Paulo. Lendo sobre a dificílima situação envolvendo o clube, lembro dela e da forma humilde e honesta que ela orbitava em torno da Lusa, quase um satélite a retirar trocados dos sedentos e famintos pós-jogo. Lembro do clima quase comunitário que senti das vezes que fui ao Canindé - talvez não comparável à Juventus e sua identificação apaixonada e apaixonante com a Mooca, mas certamente movido por sentimentos que a maioria dos grandes clubes hoje desconhecem quase por completo. É algo que merece ser preservado. E por isso torço que o momento terrível não seja o fim da linha para a Portuguesa, que o clube consiga se erguer do fundo de tanto infortúnio e possa manter-se vivo - sem fortuna, mas com dignidade - pelas décadas que virão. Para que a senhora que vende doces no entorno do Canindé possa continuar tirando seu sustento de lá, caso ainda o faça. Quem sabe emprestando seu guarda-sol a outros pouco afortunados, em dias de muita chuva na cidade multicolorida, ainda que tão cinzenta.