terça-feira, 18 de junho de 2013

O amor não acaba

[caption id="attachment_509" align="alignnone" width="900"]Foto: Ramiro Furquim / Sul21 Foto: Ramiro Furquim / Sul21[/caption]

"Acabou o amor", gritaram alguns durante os protestos em Porto Alegre e, imagino eu, em outros lugares do Brasil. Tratava-se, é evidente, de um recado não exatamente literal. A ideia era afirmar que estava encerrada a trégua, que agora a coisa era na rua e que, se viesse guerra de um dos lados, haveria guerra em resposta, sem hesitações - além de, é claro, realçar uma unidade internacional com o que acontece também lá, quase do outro lado do mundo. Era um grito com boa aceitação: muitos erguiam a voz e diziam que sim, acabou mesmo o amor, Porto Alegre ia virar Turquia e não havia muito o que as autoridades, de qualquer natureza, pudessem fazer para impedir.

Talvez os mais impressionáveis possam dizer que ontem, 17 de junho de 2013, o grito de ameaça se concretizou em Porto Alegre. Pois a caminhada virou batalha, a noite virou explosão, tivemos sangue e gritos e choro e gente correndo para todos os lados. Tivemos cavalarianos de sabre em punho, bala de borracha, gás lacrimogêneo, gente presa abaixo de espancamento. Tivemos ônibus queimado, contêineres de lixo ardendo em chamas, vidro quebrado, gente ameaçada sem nenhum sentido no meio da rua. Tivemos pedras voando. Gente acuada. Tivemos medo. E tivemos ódio, sem dúvida tivemos muito ódio ontem, na noite iluminada pelas labaredas em Porto Alegre.

Mesmo assim, eu tenho que dizer que não acabou o amor coisíssima nenhuma. Nem no mundo, nem dentro dos protestos. Porque não existe amor que não movimente alguma coisa, e o que estamos vendo Brasil adentro é puro movimento - puro amor, portanto. Amor torto às vezes, amor de quem anda desaprendido de amar, mas ainda assim uma energia comum que a todos perpassa e que junta o pessoal na rua para dizer que do jeito que está não dá mais para ir levando.

Não haverá amor em pessoas que se dispõem a ir para a rua mesmo sabendo que podem levar bala de borracha, spray de pimenta no rosto, golpe de cassetete, pontapé e humilhação? Não temos amor, por acaso, em quem sabe que pode sim se machucar, mas ainda assim vai em frente, de cara limpa ou coberta, muitas vezes sem nem saber exatamente por quê, sabendo apenas que tem que ir e que assim será? Uma pessoa que decidiu que as coisas precisam mudar e resolve, de modo politizado ou impulsivo, entendendo tudo certo ou tudo errado, andar pelas ruas da cidade dizendo que sim, as coisas mudarão - não estará essa pessoa, por acaso, transbordando de amor? Amor por inúmeras coisas, por coisas às vezes desconexas, sem relação ou pouco elaboradas - mas sempre amor pelo mundo que achamos que precisa existir e que, de algum modo, nos é negado.

Tem amor dentro da pessoa que vira o contêiner de lixo e tem amor nos que vão até lá para reerguê-lo. A diferença é de voltagem, eu diria - ou melhor dizendo, de direcionamento. Porque amor também é estar alerta sempre, e qualquer descuido transforma-o em desperdício, em desequilíbrio, em destruição. Sou pacifista, adepto dedicado da não-violência e não espero que ninguém concorde comigo, até porque não é disso que eu falo - refiro-me, na verdade, à grande energia que colocou mais de 10 mil nas ruas de Porto Alegre, 65 mil em São Paulo, 100 mil no RJ, multidões em Brasília, Belo Horizonte e por aí vai. É gente que olha para os aparelhos de estado e não enxerga a si mesmo, que sente-se fora do jogo, sem voz. Gente que carrega um amor imenso e potencialmente explosivo dentro de si e quer que ele tenha som, tenha cor, tenha forma e visibilidade. E é justamente nessa hora em que o coração doente de tanto amor represado olha pela janela e encontra seu lugar: a rua.

De fato, não apenas o amor não acabou como está transbordante. Não o amor patriótico vazio, o amor pela pátria amada deitada em berço esplêndido e que descobre que um filho seu não foge a luta e por aí vai. É um amor mais profundo: um amor de quem não vê seu amor em lugar algum e, por isso, quer mudança. É amor por nós mesmos: é amor próprio, da melhor espécie. E não achem que dá para usar esse amor para trocar um governo por outro, colocar um novo chefe igual ao chefe antigo mas de outra cor, outro rosto, outra sigla partidária. Porque esse amor que grita, que explode, que abraça e que quebra e que corre de mãos dadas para fugir da bomba e das balas - esse amor quer algo novo. Quer um mundo que corresponda a esse amor. E o mundo vai ter que ouvir esse apelo, cedo ou tarde.

Vai ter que ouvir. Porque o amor pode às vezes perder-se de si mesmo, mas acabar ele não acaba nunca.