domingo, 30 de junho de 2013

Junho de 2013: um canto

[caption id="attachment_522" align="alignnone" width="900"]Foto: Bernardo Jardim Ribeiro / Sul21 Foto: Bernardo Jardim Ribeiro / Sul21[/caption]

Acho que desde o início percebi que junho não seria um mês qualquer. Ele já nasceu intenso, puxando o chão dos meus pés como alguém que tira de um só golpe a toalha de cima de uma mesa. Não havia tempo para contemplar o que quer que fosse. Confuso, mas sem medo, me vi solto no espaço por instantes - para em seguida cair em solo acidentado, uma voz na minha mente dizendo apenas corre, corre, corre. Então corri, com o mundo explodindo ao meu redor - a vida estendeu-me uma mão, a agarrei e corri, mal sabendo por onde ia, conquistando a custo cada respiração. Quando parei, vi o mundo lançado em linda e terrível desordem. E avancei em direção ao perigo, sem nenhuma certeza de estar fazendo o que era certo, movido apenas pela inarredável necessidade de ver o que o mundo mostrava, ouvir o que ele dizia. Entender.

O primeiro gás lacrimogêneo foi perto do prédio da Zero Hora. Não fomos capazes de correr; a fumaça nos tragou e nada nos restou senão andarmos um abraçado no outro, ambos sem enxergar quase nada, tossindo, ofegando. Alguém borrifa algo no meu rosto, consigo respirar melhor, mas quem me salva é a chuva - abençoada chuva que surge como milagre em meio à fumaça, que lava meus olhos e minhas narinas com o cuidado de quem sempre me amou. Reconcilio-me com a chuva ali mesmo, no meio da confusão dos homens, e peço que ela me perdoe por tê-la tratado de maneira tão injusta. Chovendo em pequenas gotas, ela afaga meu rosto e sorri.

Na esquina da Duque de Caxias com Doutor Flores, um contêiner de lixo arde em chamas. Alguém surge com um extintor de incêndio para apagá-lo. Ouço aplausos e vaias; vejo uma pedra que voa para o alto, rumo a pessoas que assistiam a cena da janela de um apartamento. Ouço o som de uma arma de choque; vejo pessoas correrem. Todos correm, o tempo todo. Eu muito já corri; apenas me afasto, devagar. Não sei para onde ir. Não há onde esconder-se do Tempo.

Leio e releio as mesmas palavras. Já sou capaz de repeti-las de forma exata, e ainda assim as memorizo um pouco mais a cada noite. E o Tempo condensa-se em novas formas, junta o que foi e o que está sendo, ri da hierarquia ridícula dos dias. Durmo pouco, acordo sobressaltado. Tomo café. Vou à rua. Por vezes, ando só. E logo desisto de entender as coisas, percebendo que não há nelas nada para ser antecipado, nenhum acontecimento sobre o qual eu possa acautelar-me ou pretender ter qualquer tipo de controle. Tudo escapa de minhas mãos. Nada tenho. E estou em todas as coisas.

Faço uma longa caminhada. Saio da esquina com a Osvaldo Aranha, desço pela Venâncio Aires, pego a João Pessoa até a Salgado Filho, passo pela Esquina Democrática. Pelo caminho, vejo os vidros quebrados, as frases escritas com tinta berrante no meio do cinza. Há um toque de humano em cada coisa que vejo; meu coração lembra de cada detalhe. Meus olhos estão cheios de beleza. Ao fim da caminhada, detenho-me longamente no Largo Glênio Peres. Percebo imediatamente que, para mim, ele jamais voltará a ser o mesmo. É madrugada de sexta-feira, e estou só. Mas estou pleno.

Consigo sorrir.

Perguntam-me o que acho. Não acho nada. Não há o que dizer em meio ao turbilhão. Ontem foi segunda, hoje já é quinta-feira, e então o fim de semana, e ja é segunda-feira de novo. Após o almoço de domingo, faço um longo retorno para casa; desvio o trajeto e vou até o colégio onde passei parte da infância. Está fechado, e hoje as grades de arame viraram muros de tijolos, altos. Só um dos pavilhões segue o mesmo; mesmo assim, nada mudou. A calçada da rua de trás segue tomada pela grama não cortada. Lembro da menina que, com um sorriso no rosto, me revelou que eu um dia seria o que hoje sou: um contador de histórias. Meus olhos enchem de lágrimas de pura gratidão.

Não consigo parar de andar. É uma caminhada que liga pontos inexistentes, sem partida e sem chegada: é uma jornada sentimental no coração da cidade que grita e sangra. O mundo todo está louco. O cachorro que foi meu amigo fiel por tantos anos morre enquanto estou preso no engarrafamento, incapaz de dizer a ele pela última vez o quanto ele foi um bom cão o tempo todo. A última vez que o vi foi na noite anterior, chegando em casa depois de uma noite de bombas, balas e fugas. Me recebe feliz, mas sem muito fôlego: tosse e geme baixinho. Digo a ele que é um bom cão e que ele pode voltar a dormir. Ele vai, e nunca mais o verei: no começo da manhã o levam até a clínica veterinária, e à noite ele está morto. Morreu de olhos abertos, boca aberta. Querendo viver. Afago rapidamente sua cabecinha sem vida e digo uma última vez, em silêncio: bom cachorro. Bom cachorro.

Não há tempo para luto. Amor e morte se misturam, sentimentos antagônicos lutam para achar algum tipo de calmaria dentro de mim. Não posso parar de andar; o mundo não me permitiria. O amor que vejo em todas as coisas me impulsiona. Sento brevemente diante de pessoas importantes; elas não me trazem explicação alguma. Olho nos olhos de um homem transtornado em meio a carros destruídos por uma onda de revolta além palavra, além explicação. Eram uns quinhentos, ele diz, e porque ninguém faz nada, ele diz, só deixam quebrar tudo e jogam bombas sobre a gente. O senhor está trabalhando?, me pergunta outra voz. Tá na linha de tiro, qualquer coisa a gente não se responsabiliza. Sussurro dizendo que não tem problema, eu me garanto, muito obrigado. Mas não me garanto de coisa alguma, isso eu bem sei. Que garantia existe em um mês como esse, em um mundo como esse?

Surge música. Sinto cheiro de pipoca, churrasco, quentão. Consolo efêmero: não será desta vez que a vida fará sentido. Nenhum odor alegre consegue mascarar o cheiro do gás. Não corram, eu grito. Não corram. Mas todos acabam correndo, atropelando uns aos outros, empurrando, gemendo, gritando. Cheios de medo. Alguns cheios de ódio. Contra a parede. Alguns dormem. Passo por dentro de suas casas e peço desculpas, mas sigo andando sem nem saber mais por quê, apenas porque não consigo mais parar de andar. De ver. Sai e vê, diz a besta; eu saio, e vejo. Ando em sentido contrário aos que correm, na exata direção do mundo que explode.

Pego a vida pela mão e a arrasto até uma esquina ligeiramente mais segura. Não há fuga: estamos encurralados. Gás sobe e desce pela rua onde estamos; há ruído e terror em todos os lados. Querem entrar aqui?, nos perguntam da porta de um hotel, que dias depois seria ele também alvo das pedras ausentes de razão. Olho para a vida, ela olha para mim, e ficamos do lado de fora. Não há esconderijo; não há saída senão encarando de frente a confusão.

Respiro fundo. Vamos?, pergunto. E começo a andar de novo, os lábios úmidos com lembranças distantes, uma música absurda tocando repetidamente na minha mente. Uma música que não existe.

Há um toque de humano em tudo que vejo.

Ao fim da jornada, um anjo me dá um doce. É a mais saborosa de todas as iguarias. Como com o coração cheio de gratidão, os olhos voltados para o céu.