domingo, 7 de julho de 2013

O Mercado vive

[caption id="attachment_530" align="alignnone" width="960"]Foto: Ramiro Furquim / Sul21 Foto: Ramiro Furquim / Sul21[/caption]

Fui até o Mercado com o coração cheio de dor. A notícia, como todos sabem, era terrível: ardia em chamas o Mercado Público de Porto Alegre, agonizava e sumia diante de nossos olhos um dos únicos locais ainda capazes de agregar a população da grande cidade em busca do próprio espírito. Hesitei um pouco em ir até lá: mais do que a eventual sensação de inutilidade em minha jornada, meu coração temia explodir em dor diante do Mercado, que tanto amo e tanto amor me trouxe em tantas situações, em um momento que parecia ser o de sua morte. Mas meus colegas de redação estavam lá, precisando de minha presença, e não me vi mais em condições de fugir: peguei o crachá, vesti as primeiras roupas que achei e lancei-me na noite cinza de chuva e fumaça, cinzenta no coração dos homens e nas perspectivas do que viria.

"Vamos direto para o fogo, meu amigo", disse eu ao taxista, e de mais informações ele não precisou para entender perfeitamente o que eu dizia. O motorista foi rápido, sério e profissional: entendeu minha pressa e a gravidade da situação, deslocando-se com agilidade rumo ao coração da cidade. Antes de chegar ao Estádio Beira-Rio já sentíamos o cheiro da fumaça. "Estão defumando a cidade", brincou ele, mas nenhum de nós riu. A nenhum de nós a situação parecia divertida.

Pelo caminho, enquanto tomava rápidas notas no caderno que puxei da escrivaninha e me servia como bloco de notas naquela pauta inesperada, imagens do Mercado Público me ocorriam à mente. Caminhadas em meio às bancas, leituras sentado em mesas de pedra, aguardando o ônibus, parando para contemplar. Dando a volta pelo prédio de ponta a ponta, apenas pelo prazer de observá-lo e observar as pessoas. Uma noite recente, sentado no meio do Largo Glênio Peres, cercado de alegria e de vida, a sombra do Mercado caindo sobre nós. O Mercado Público é mais que um prédio ou ponto de referência: é um ponto central da minha memória afetiva, uma espécie de marco zero para os corajosos, os que ainda ousam amor na cidade que luta para não ser totalmente corrompida pelo cinza. É onde meu coração porto-alegrense fincou seus alicerces. Um lugar que amo. E quem morará nessa cidade e não terá amor pelo Mercado Público, pela sua insistência em dizer que somos mais que ir e voltar do trabalho, que somos mais do que passar correndo pela vida, que algo permanece, que certas coisas que somos existem além de todos nós?

Com certo esforço, consigo controlar as lágrimas.

Paguei a corrida em questão de segundos, desci do táxi e rumei pela Borges de Medeiros, caminhando com dolorida pressa, me esforçando para enxergar o cadáver no meio da fumaça.

Não havia cadáver, porém.

As chamas ainda eram visíveis. Janelas do andar superior cintilavam com fagulhas vermelhas, sombras insinuavam movimentos enquanto eram assediadas pela cor inconfundível e indescritível das chamas. Parte do teto já não existia mais. Uma solitária escada Magirus tentava fazer o trabalho que talvez dez delas não conseguissem cumprir. Corajosos homens corriam e lutavam para que o fogo não exigisse ainda mais terreno para si, enquanto curiosos oscilavam entre a surpresa, o quase divertimento e as lágrimas. A chuva estava ausente. Não havia muito ruído, mas havia muita confusão. E o Mercado continuava de pé, no lugar onde sempre esteve, as chamas devorando-o por cima, cambaleando diante do incêndio. Ferido.

Mas vivo.

Não sou capaz de descrever a sensação que tive naquele momento. Foi mais que um alívio; foi como uma descarga de energia, uma breve epifania, uma revelação. O Mercado não ia cair, não ia arder até o chão, não ia transformar-se totalmente em cinza diante dos nossos olhos chorosos e incrédulos. Não era o fim: era dor e era incerteza e era destruição e separação, mas não era o fim. Não tinham tirado tudo de nós, no fim das contas: o Mercado continuava lá. Continuávamos lá, junto com ele. E sorri abertamente, algumas das lágrimas há muito sufocadas encontrando vazão pelo rosto abaixo. Mas não mais por luto. Não mais.

"Vamos precisar reconstruir essa cidade", disse eu a um casal de amigas, algumas das boas pessoas que me emprestaram um pouco de afeto no meio da desordem. Agora, pensando a respeito dela, sinto-a ainda mais verdadeira. Porque é isso, não é? Reerguer o Mercado é, de certa forma, reerguer Porto Alegre - e ambas são urgências, ambas são necessidades inarredáveis se queremos salvar o que de melhor nós fomos, somos e podemos ser. Há, de fato, uma cidade esperando por nós. Ela resiste, porque ela é forte, mas precisamos ajudá-la a não desaparecer - seja em meio ao fogo, seja em meio à frieza de um cotidiano terrível e intolerável. Precisamos voltar. Os corajosos, os que ainda ousamos amor em meio ao cinza: somos nós os que não podemos recuar. Que venha o fogo: não viraremos cinza.