domingo, 14 de julho de 2013

A ocupação, a desocupação e a mudança

[caption id="attachment_539" align="alignnone" width="900"]Foto: Ramiro Furquim / Sul21 Foto: Ramiro Furquim / Sul21[/caption]

Entrei pela primeira vez na Câmara ocupada de Porto Alegre ainda na quarta-feira, quando havia alguma lembrança de dia em meio à noite já quase completa. Muitas vezes estive na Câmara durante meus anos de trabalho jornalístico, fazendo desde cobertura de pautas até simplesmente assistindo uma ou outra sessão mais interessante - mas entrar lá naquele dia foi um pouco como conhecer a Câmara novamente, como se aquele fosse um lugar novo e, ao mesmo tempo, carregasse o espírito do reencontro dentro de si.

Estava bela e pulsante a Câmara de Porto Alegre - cheia de cartazes, palavras de ordem, música. Pessoas. Era um ambiente transbordante de boas intenções - que não se modificou nos dias seguintes, ainda que o natural desgaste de uma longa ocupação tenha ampliado algumas tensões. Uma ocupação de pessoas confiantes na validade de sua causa, dispostas a sacrificar várias coisas em nome de sua crença na mudança. Sou um entusiasta da mudança, alguém que sente dentro de si a necessidade imperiosa de redesenhar esse mundo injusto e absurdo; natural, portanto, que nutra considerável simpatia por essas pessoas e pelo que estão fazendo em Porto Alegre.

Escrevo esse texto antes do processo de desocupação, previsto para o comecinho da manhã de segunda-feira. Não sei, portanto, como a coisa se dará - espero que de forma tranquila, já que tenho certeza que nenhum dos lados está interessado em qualquer situação incontrolável. Também não sei se a decisão do Bloco de Lutas de acompanhar das tribunas a sessão da tarde de segunda-feira será levada a cabo - e o que se dará depois dela, caso haja mesmo sessão. Mas acredito que, mesmo com eventuais críticas ao processo (como o impedimento total a muitos veículos de imprensa de entrar no plenário, o que considero humildemente um equívoco), seja possível dizer que o movimento sairá triunfante - pois conseguiu expor algumas coisas, acentuar outras, e deixar muito clara a necessidade urgente de repensar muitas coisas no modo como nos relacionamos com a política, em todas as suas esferas.

Não é mais tolerável, por exemplo, que empresas cujas identidades desaparecem em meio a consórcios explorem um serviço público e fundamental para a população sem que ninguém tenha noção real de quanto lucram com isso. Não é aceitável que estejamos há mais de duas décadas esperando uma licitação em serviço de tamanha importância. Não é correto que qualquer diminuição no valor das passagens venha de deduções de imposto e outras medidas nas quais é o governo que abre mão de dinheiro, enquanto os pedidos de aumento de passagem são sempre aceitos rapidamente pelo comitê que os analisa. Talvez não seja de fato possível uma passagem 100% livre em cidades de grande população, mas é difícil crer que não seja possível diminuir os custos a um valor racional - especialmente porque não é luxo ou privilégio usar ônibus em Porto Alegre ou em qualquer uma das grandes cidades brasileiras: é uma necessidade inarredável. Essas questões todas o Bloco trouxe ao debate, e não será fácil retirá-las de pauta. Se isso não é uma vitória do movimento, não consigo sequer imaginar o que seria.

A incapacidade dos políticos eleitos em compreender o caráter desse movimento é bastante visível. Não diria que o vereador Thiago Duarte, presidente da Câmara, seja o único responsável pela dificuldade de diálogo: acompanhando o caso como repórter, pude perceber que ele estava sob grande pressão de muitos colegas de Casa, que não deram as caras na Câmara mas muito se mexeram nos bastidores. Fico aliviado que se tenha evitado uma solução truculenta (algo que deve ser atribuído em grande medida aos vereadores de oposição, que atuaram intensamente para evitar medidas do tipo), e acho que o sr. Thiago Duarte também deve comemorar esse desfecho, mesmo que nem sempre tenha atuado nesta direção. Cabe deixar claro, porém, que os nobres vereadores não são vítimas de coisa alguma: contribuíram decisivamente para que ocorresse a ocupação, ao derrubar todas as emendas que buscavam maior transparência no transporte coletivo, em evidente proteção ao interesse dos empresários do setor.

É difícil, estando dentro do momento histórico, compreendê-lo completamente, de forma que qualquer tentativa de leitura corre o risco de ficar velha em questão de segundos. Mas me parece claro que estamos vendo, mais que o nascimento, a legitimação ativa de novos atores políticos - um processo que, aqui em Porto Alegre, ganhou fôlego a partir do episódio do Tatu-Bola, em outubro do ano passado, embora já viesse ocorrendo desde bem antes disso. A movimentação da sociedade civil (esse mesmo povo que adoravam chamar de "alienado" e "desligado da política") lançou o país em uma linda e intensa ebulição - e haverá quem considere isso ruim? Não era exatamente disso que precisávamos, que pedíamos dentro de nós há tanto tempo? O que haverá a temer?

A mudança é barulhenta, é confusa, às vezes confude a si mesma. Nos leva de arrasto, em outras. Não nos pede licença nem pergunta se estamos de acordo: quando está madura, simplesmente surge, e cabe a nós ter fôlego e disposição para juntar-se a ela em sua marcha. Gostem ou não da mudança, e seja lá no que ela resultará, o fato é que ela está em andamento em Porto Alegre - e foi o que pude ver quando entrei no plenário da Câmara, na última quarta-feira e nos dias seguintes. A quem tem, como eu, a pretensão de dar testemunho das coisas do mundo, não cabe aprovar ou desaprovar a mudança - é meu dever observá-la, entender o melhor possível, relatar. Porque ninguém, nem mesmo os próprios atores da mudança, sabe para onde ela irá. Só há uma certeza: ela não vai parar. A desocupação não é um fim; está mais para um recomeço. E está sendo muito enriquecedor ver tudo isso acontecer.