terça-feira, 9 de julho de 2013

Trilha sonora: Armas de 68

A primeira vez que ouvi "68 Guns" do The Alarm foi numa madrugada de dia de semana, sozinho na sala de casa, assistindo Clássicos MTV. Lembro que era um período em que eu ficava muitas madrugadas sozinho, acordado até altas horas, sem nenhum compromisso no dia seguinte - deve fazer quanto tempo isso, dez anos talvez, quem sabe um pouco mais? Não lembro - condensou na mente, virou memória sem tempo e sem referência, caldo de um passado que começa lá longe e não acaba nunca. Era algo comum na minha vida, de qualquer modo: ficar solitário na noite silenciosa, vendo vídeos de músicas que não conhecia, esperando alguma coisa acontecer. Algo que nem eu mesmo imaginava que fosse, e que demorei tempo para entender que ninguém mais poderia saber além de mim mesmo.

[caption id="attachment_534" align="alignleft" width="300"]Foto: Reprodução Foto: Reprodução[/caption]

Seja como for, fiquei fascinado. Eram punks (ao menos, me pareciam punks), mas a música não era suja, tosca. Era algo além. Havia um clima de poesia no negócio: eram caras dizendo uma coisa muito sincera e, mais importante que isso, SÁBIA até certo ponto. Era um grito de guerra, mas era também sensível e generoso, ou ao menos assim me soava. Os próprios músicos, na minha visão de adolescente, pareciam caras prontos para lutar, mas não pelo direito de beber até cair ou caçar mulheres noite adentro. A causa deles me parecia mais pura, mais sincera e mais justa - ainda que eu não entendesse lá muito bem que causa fosse essa no fim das contas. E o nome do disco que aparecia nos créditos de abertura me fascinou também: Declaration. Que coisa mais linda, uma banda batizar seu disco de Declaration. É o mais forte e sincero dos nomes, quase como Augusto dos Anjos batizar seu único livro de Eu. Declaration. Declaration.

Na época, eu não tinha sequer computador em casa, que dirá as facilidades de hoje para baixar mp3. Vi o clipe, ele acabou e devo ter ficado alguns anos sem sequer ouvir aquela música de novo, apenas a memória do refrão gritando "68 Guns will never die" tocando no fundo do cérebro de vez em quando. Isso é algo que o pessoal uns anos mais novo jamais entenderá: a sensação de apenas lembrar de alguma música ou cena de filme, recriá-la na mente sempre com novos detalhes, fazê-la cada vez mais mítica e cheia de significado até que ocorra, por mágica ou investimento, o reencontro. Até mesmo algo como o mercantilismo cultural tem lá a sua parcela de encanto - no caso, o encanto de fazer com que pouco mais de três minutos de música transbordem de significado, e cada vez mais na medida em que se mantém longe dos sentidos, guardados apenas dentro da alma.

Hoje, é claro, tudo é diferente. Tenho a discografia completa do The Alarm em mp3 e aos poucos estou adquirindo tudo em CD. O Declaration penso seriamente em comprar em LP, inclusive. "68 Guns" nem é mais minha música favorita da banda - "Blaze of Glory" tomou esse lugar, sendo hoje em dia praticamente o Hino Nacional de Igor Natusch (busquem no YouTube, ouçam e entenderão). Não fico mais assistindo TV sozinho de madrugada, não existe mais Clássicos MTV e a própria MTV está à beira de não existir mais. Eu mesmo, embora não tenha mudado tanto assim, já não sou mais a mesma pessoa. Entrei e saí da faculdade, tenho emprego, projetos, amigos, amores, vivências. Buscas. Não estou mais só.

Mas acordei hoje com o coração meio inseguro, depois de ter dormido um pouco além do que gostaria, resquícios de um pesadelo transformando-se em ideias confusas dentro de mim - acordei me sentindo com 16 ou 17 anos de novo, em suma. E me surgiu na mente o refrão de "68 Guns" - não o refrão de verdade, o que está a um botão de distância e consigo hoje ouvir a qualquer instante, graças ao universo em rede. Ouvi o refrão da minha memória, muito mais grandioso e eloquente, o refrão que eu ouvia quando só existia a lembrança e que era quase uma lenda dentro de mim. Era o moleque inexperiente e recluso do meu passado gritando para o Igor Natusch mais velho e experiente, mas ainda cheio de incertezas: deixa de frescura, cara. Tua vida é ótima. Levanta e vamos em frente.

Eu escutei, claro.

68 Guns will never die.

http://youtu.be/gLK3k_0GHrg