quarta-feira, 25 de abril de 2012

Pequena nota sobre o abandono

Me perguntam sobre abandono. Quer saber o que é abandono, meu caro? Abandono é o morador de rua que vi um dia desses, cara fechada, roupas cinza-escuro de pura sujeira, carregando um aparelho de som todo detonado enquanto atravessava a Avenida Ipiranga. O homem cruzou a rua com o sinal verde para veículos, bem devagar, sem olhar para os lados, sem a menor preocupação se vinha carro ou moto ou caminhão ou o que quer que fosse. Vários veículos passaram a mil, tirando fininho dele, flertando com o atropelamento. Gritando, xingando, buzinando - e ele nem aí. Chegou do outro lado meio que por milagre, parou na ponte por cima do arroio, fez um golpe de braço e jogou o aparelho de som lá embaixo, no meio da água suja, soltando um suspiro alto de quem se livra de algo que odeia. E o aparelho se estatelou lá em baixo com um estrondo e o cara seguiu andando devagar, indignado com algo que eu nunca vou saber o que é. Abandono, tu me perguntas? Abandono é esse cara, te respondo. Abandono de toda lógica, todo sorriso, todo motivo, todo sentido e toda explicação. Abandono da vida. Alguém que anda e respira porque nem sabe mais por quê. Porque odeia, talvez. Que cruza a minha vida por uns poucos segundos e logo some, desaparece na cidade cinza, vai odiar a vida em algum lugar bem longe de mim.